Barcelos

Revisitação das memórias da velha fábrica do “azeite novo”

Há 20 anos, em Cossourado, o “azeite novo” que todos procuravam para ter à mesa da consoada fazia-se numa velha fábrica, ainda em funcionamento mas já modernizada. Fernando Esteves Baptista (1937-2016) foi o seu lagareiro durante 45 anos. O SETE JORNAL recorda-o (foto) com uma reportagem dos tempos em que um lagar também podia ser um lugar mágico.

PAULO VILA

24 de Dezembro 2024
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Revisitação das memórias da velha fábrica do “azeite novo”

O sol outoniço já se “esconde” quando dois homens, sorridentes e aparentemente bem dispostos, abandonam o pequeno pavilhão branco do lugar do Souto, em Cossourado. Um deles, o que segue um pouco mais à frente, encolhe ligeiramente os ombros e estremece quando é atingido pelo frio que naquele sábado fustiga o vale do Neiva. No interior do lagar está-se bem. A um canto, a caldeira alimentada com bagaço da azeitona mantém o espaço permanentemente aquecido.

Se pudessem, provavelmente voltariam para dentro, mas já ali estão há pelo menos três horas, o tempo médio necessário para que uma lagarada fique pronta. Agora, e depois da longa espera, é altura de regressar a casa. Nas mãos carregam alguns bidões cheios de azeite e, enquanto conversam, descem uma das rampas que dá acesso àquele que é já o único lagar de azeite em funcionamento no distrito de Braga.

O ano “foi bom” e é precisamente numa dessas rampas que estão amontoadas algumas dezenas de sacos de azeitona. Lá dentro, o espaço já está ocupado por outras tantas. São algumas toneladas. As etiquetas colocadas na boca de cada saco deixam-nos perceber que pertencem a várias pessoas. Só assim se compreende, também, por que por ali andam em tão grande número. “Muitas pessoas gostam de vir assistir à feitura do seu azeite, não por uma questão de desconfiança, mas para estarem mais perto e verem como é que as coisas se processam”, conta-nos Rui Baptista, um dos filhos do lagareiro.

A azeitona foi ali depositada sob marcação, para evitar que permaneça dentro dos sacos por muito tempo. Caso contrário, acabaria por aquecer e fermentar, prejudicando irremediavelmente a qualidade do azeite. Enquanto isso não acontece, Fernando Baptista, o lagareiro, aconselha as pessoas a manter a azeitona em água, uma vez que “é o melhor processo” para a conservar até ser transformada.

O “desencapachamento” é o processo pelo qual os capachos são limpos, ficando prontos para serem utilizados novamente. ©PAULO VILA

O que o lagareiro já não consegue é gerir as marcações como desejaria. A vontade das pessoas em ter “azeite novo para a consoada” é incontrolável e, por isso, vê-se obrigado a trabalhar das oito horas da manhã à meia-noite. “É sempre assim. Nos dias que antecedem o Natal, sobretudo a partir da segunda quinzena de Dezembro, toda a gente o quer fazer para que tenham azeite novo para o Natal. De maneira que se torna muito difícil a gestão das marcações”, explica Rui Baptista. Já o pai lembra que as pessoas não lhe perdoariam se não lhes fizesse o azeite. Presume, até, que terá que trabalhar no dia 24 de Dezembro…

Duas dessas pessoas estão agora junto à balança, assistindo tranquilamente ao transporte dos sacos que é feito por um dos funcionários do lagar. De olhar atento, vêem a azeitona ser pesada ao mesmo tempo que se lamentam do trabalho que tiveram para fazer a colheita. “A pesagem não representa nada”, diz o filho do lagareiro, mas assim é possível quantificar a prensada. “Isto dá muito trabalho! É preciso gente para subir às oliveiras. Tem que se ripar, limpar, ensacar…”, conversam demoradamente as duas mulheres.

O início do processo de fabricação do azeite tem lugar no exacto momento em que, depois de pesada, a azeitona entra num tanque de lavagem mecânico. Os restos de terra, alguma folha e pequenos paus que a azeitona possa ainda trazer ficam ali retidos. Depois de lavada, é transportada para o interior do moinho com o auxílio de um sem-fim, que atravessa uma das paredes do lagar.

Através de uma pequena porta, somos então conduzidos ao coração da fábrica do “azeite novo”. O cheiro a azeitona é intenso e o barulho é proporcional à robustez das máquinas. Há também algum fumo. Aqui e ali, ouvem-se vozes gritando ordens. Pequenas explosões entoam pelo edifício de cada vez que a pá carrega a fornalha com mais uns quilos de bagaço de azeitona. Apesar de tudo, o ambiente é acolhedor.

Após ser misturada com alguma água, a massa de azeitona é “encapachada”. ©PAULO VILA

O som estridente do moinho assegura-nos que a moagem prossegue a bom ritmo. Acoplada a este, uma batedeira recebe a massa de azeitona e mistura-lhe alguma água. “Esta água tem duas funções”, elucida-nos Rui Baptista. “Torna a massa mais líquida e aumenta-lhe a temperatura. Uma boa temperatura da massa é importante porque ajuda à separação da gordura”. Por isso e por momentos, o velho moinho verde ganha a imagem de um enorme caneco a fumegar.

Um funcionário do lagar é agora ajudado por uma outra mulher – mais uma das que ali estão para ver o azeite ser feito – no “encapachamento” da massa. O capacho é uma espécie de tapete de forma circular, feito de corda de nylon, onde são colocadas pequenas quantidades de massa de azeitona para depois ser prensada. Com o auxílio de um fuso e à medida que vão sendo carregados, o casal sobrepõe os capachos num carrinho, para depois serem transportados até à prensa.

Em tempos, recorda Rui Baptista, “o encapachamento era feito à pá”. Perdia-se tempo infinito. Por força da industrialização, muitas das tarefas dos lagares foram sendo simplificadas e, agora, poucos segundos são suficientes para que o capacho fique coberto de massa assim que se roda a pequena torneira instalada na batedeira.

À medida que os capachos vão sendo sobrepostos e atingem o limite máximo dos fusos, dois homens empurram o carrinho para o centro do lagar. Dá-se início à prensagem. Em média, é necessária uma hora para que toda a gordura, ou quase toda, seja extraída da massa cor de vinho. Os momentos iniciais são acompanhados de muito perto por um funcionário que, por entre as prensas, aqui e ali, dá instruções aos seus colegas. Parece ser ele quem determina o ritmo a que o lagar deve funcionar.

Um bom rendimento da azeitona depende, entre outros factores, da eficácia da prensagem. Ali, no pequeno pavilhão branco onde está instalado o lagar de Cossourado, as prensas são hidráulicas, mas funcionam a água e não a óleo. “É um sistema antigo”, dizem-nos. Ainda assim, a pressão máxima chega a atingir uns incríveis 350 kg por centímetro quadrado! Logo aos primeiros “quilos”, a emulsão escorre abundantemente para o interior das “tarefas”, uns recipientes metálicos onde é armazenado o resultado da espremedura antes de se proceder à decantação.

Depois do “encapachamento” a massa de azeitona é prensada durante uma hora. ©PAULO VILA

De tão espremida, a massa já não é mais do que uma côdea seca. No entanto, a decantação não começa sem, primeiramente, Fernando Baptista “queimar a prensa”. Com uma pequena vassoura de piaçaba e água a ferver, o lagareiro lava as extremidades dos capachos para extrair os restos de gordura. Trinta e três anos depois de se ter iniciado como lagareiro, é de volta do azeite que Fernando Baptista se sente bem. “Faço isto por paixão”, confessa.

Acondicionada no interior das “tarefas”, colocadas numa quota inferior às prensas, a emulsão é misturada com água quente para facilitar a decantação. O lagar não está demasiadamente mecanizado e, por isso, a feitura do azeite obedece em grande medida a práticas artesanais. Abrem-se e fecham-se torneiras. Verifica-se a temperatura da água. Alimenta-se a caldeira… Eis-nos chegados ao momento em que nada pode falhar.

“A fase mais bonita de todo o processo” é finalmente atingida. Concluída a decantação, o azeite entre numa centrifugadora onde são extraídas as impurezas e algumas partículas de água que não tenham sido convenientemente separadas durante o processo de decantação. O lugar do lagareiro é aqui, junto à centrifugadora. É a ele que compete controlar a temperatura da água (que não deve ir para além de uma variação entre os 60 e os 80 ºC), bem como a quantidade de azeite que entra na centrifugadora.

O esforço das oito pessoas que trabalham no lagar por cada turno esgota-se ali, na bica por onde chegam a passar diariamente cerca de três pipas de azeite. O equivalente a 15 toneladas de azeitona para um rendimento de dez por cento, percentagem que Fernando Baptista faz questão de conseguir “para deixar os clientes satisfeitos”.

É também aqui que se concentra o maior número de pessoas. Umas porque aguardam que a prensada fique pronta, outras porque estão ansiosas por saber quanto rendeu a colheita. “Quanto deu?”, interroga uma mulher em voz alta. “Quer pagar ou dá a maquia?”, pergunta o lagareiro a outra. Contrariamente ao que sucedeu em tempos, são já poucos os que optam por dar a maquia em troca do trabalho de produção. A maioria, diz Fernando Baptista, “prefere pagar”.

Ao fim de um processo de cerca de três horas, são retiradas do azeite pronto a consumir algumas impurezas que não ficaram retidas durante a decantação. ©PAULO VILA

De qualquer modo, não fosse o “orgulho” e não seria pelo rendimento que o lagar se manteria a funcionar. “Houve anos em que o investimento ultrapassou largamente o rendimento”, desabafa o lagareiro. Para além disso, as entidades que regulam o sector são muito rigorosas na aplicação da legislação, motivo pelo qual muitos dos lagares da região fecharam. No Alto Minho, prossegue Fernando Baptista, “fecharam cerca de 50 só nos últimos três anos” (2001 a 2004).

O ano foi abundante em azeitona, mas o lagareiro queixa-se que já “não há quem a ripe. As pessoas de idade não sobem às oliveiras e, por isso, muita perde-se.” Ainda assim, contrapõe o filho, “há um grande aumento” no que respeita ao período de funcionamento do lagar. “Nós, o ano passado trabalhámos cerca de quinze dias a três semanas. Este ano, em princípio, vamos trabalhar três meses, até ao final de Janeiro”.

Nessa altura, quando as oliveiras estiveram a poucos meses de florir novamente, Fernando Baptista terá então que lançar mãos a outro trabalho. Um deles, passa pelo tratamento das “águas russas” que foram sendo armazenadas numa lagoa construída para o efeito. Como explica Rui Baptista, “estas águas são muito ácidas e é necessário neutralizá-las”. Quando isso acontecer, já estarão em condições “para regar os campos, essencialmente terrenos arborizados, uma vez que têm uma carga orgânica bastante grande”.

Para Rui Baptista, o fabrico de azeite já “não é uma indústria muito poluente” porque, entretanto, foram adoptadas medidas para reduzir o seu impacto. A par com o tratamento das “águas russas”, o bagaço que não é consumido pela caldeira, por exemplo, é vendido para extracção de óleo vegetal. E a actividade tem que ser desenvolvida no respeito por todas as normas de higiene e segurança. “Torna-se um bocado difícil”, mas… Numa pequena divisão contígua ao lagar, Fernando Baptista promete-nos não abandonar a actividade de lagareiro. “Tenho isto há muitos anos e, enquanto puder, vou continuar a fazer azeite”.

Entretanto, a máquina do “desencapachamento” calou-se. Um veio partido impede-a de continuar a bater os capachos, libertando-os da massa de azeitona que a eles se agarrou. Com ou sem ela, até à meia-noite, o velho lagar há-de continuar a funcionar. É que, mesmo ali ao lado, há ainda gente à espera do “azeite novo” para poder regressar a casa.

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