A transformação colectiva do 25 de Abril é feita de milhões de histórias individuais. A minha começou no dia em que nasci, 10 anos e dois meses depois da Revolução dos Cravos, e perdura até ao presente. Aprendi, ainda na escola, a celebrar Abril muito antes de perceber o que era ser livre; em termos gerais e omitindo a terrível violência da Guerra Colonial e da polícia política, ensinavam-nos que até à revolução se vivia sob o manto da opressão, entregues a um destino marcado por profunda pobreza material e intelectual.
Abril, antes e depois
Recordo-me de procurar confirmar estas informações em casa; se, por um lado, a geração dos meus pais era capaz de atestar o impacto desta transformação política e social, os meus avós maternos, por outro, cujas vidas foram mais rigidamente moldadas pela ditadura, pareciam não ter memória a não ser da sua pobreza, sem saberem reconhecer a conjuntura que os condenava ao trabalho infrutífero e à ignorância.
Porque a realidade é neutra para quem vive nela sem ter conhecido outra, demorei décadas a compreender aquilo que o 25 de Abril trouxe à minha. Vou reencontrando esta resposta a cada fase da minha vida, com renovado e expandido significado, na comparação das minhas experiências face às da minha mãe e das minhas avós.
Muito de Abril se fez e ainda faz nas mulheres deste país: as minhas avós nasceram ambas nos anos 30 e fizeram-se adultas em plena ditadura, num Portugal orgulhosamente só na periferia de uma Europa em guerra.
Uma delas era dona de casa, um termo insidioso, uma vez que a época e os costumes não lhe permitiram sequer ser dona de si própria. Numa época em que a mortalidade infantil era de aproximadamente 60 óbitos por cada mil nascimentos, os 14 filhos saudáveis que teve são testemunho dos seus méritos ao leme da sua família numerosa. Porém, são também eles o que a manteve presa na esfera doméstica e sempre na corda-bamba da privação.
A outra avó era trabalhadora agrícola e emigrou com o meu avô e a minha mãe, ainda criança, para França, nos anos 60; fê-lo para sobreviver, como muitos outros na mesma aldeia e Minho afora. Ambas eram analfabetas, instruídas apenas pelos mais severos dos mestres: o trabalho e a Natureza.
A minha mãe, levada para os arredores de Paris aos 11 anos, nunca lá conheceu uma escola, apenas as cozinhas e fábricas onde aprendeu ofícios. Todas casaram novas, visto que à época o casamento era o único e óbvio caminho para as suas vidas, à excepção de servir como criada em casas ilustres.
Examinando as suas vidas através do filtro da minha, faltou às minhas avós tudo aquilo que faz de nós cidadãos. Faltou-lhes conhecer as letras e, com elas, as ideias e os factos para que pudessem relacionar-se com o mundo em seu redor. Faltou-lhes o direito ao voto e a participação activa em diferentes áreas da sociedade, incluindo o trabalho remunerado e assegurado por direitos e obrigações. Em vez disso, viveram em abnegação quase monástica para servir as suas famílias, fazendo sua a missão de limpar, alimentar, cultivar, coser e, de modo geral, cuidar, de sol a sol e sem alívio. Sem desmerecer a nobreza desse propósito, não é possível ignorar que não foi uma escolha delas.
Já para a minha mãe e muitas outras mulheres da sua geração, jovens adultas aquando o 25 de Abril, foi-lhes permitido exercer a cidadania, podendo finalmente dividir-se entre a vida familiar, profissional e cívica, pese embora limitada pela herança dos costumes que ainda as sobrecarregava com todo o trabalho doméstico, lhes condicionava o acesso ao divórcio, à igualdade salarial ou, por exemplo, a protecção em situação de violência doméstica, ainda hoje o crime mais denunciado e que mais mata em Portugal.
Se na geração das minhas avós a pobreza e a ignorância, embrulhadas em obscurantismo religioso, as privaram de cuidados de saúde e de planeamento familiar (viriam a ter os filhos que Deus quisesse e da forma que a Natureza ditasse), a minha mãe pôde decidir quantos filhos teria e tê-los no hospital, enquanto ela nasceu em casa, com o auxílio rudimentar de outras mulheres pouco menos ignorantes na matéria, em condições insalubres e sem resposta em caso da mais simples complicação.
Já eu andei na escola, como todos os rapazes e raparigas da minha geração. Graças à livre circulação de pessoas na União Europeia, estudei em Inglaterra, onde fiz uma licenciatura e um mestrado, beneficiando das mesmas condições do que as de qualquer estudante inglês. Estagiei em França e trabalhei em Lisboa antes de regressar à casa de partida. Tive sempre patroas mulheres nos meus empregos – mulheres com filhos, empresas e diversos interesses, propósitos e militâncias.
Tenho hoje um trabalho onde utilizo as diferentes competências que adquiri e que me leva a viajar até grandes cidades europeias e americanas, sem precisar que o meu pai ou marido me autorizem a obter um passaporte. Nunca me casei e pude viver a minha vida afectiva nos meus termos. Adiei a maternidade para poder fazer tudo isto. Sou até livre de publicar este texto, o que 50 anos antes me seria vedado.
Muitas outras mulheres da minha idade e mais novas vivem vidas semelhantes à minha, procurando o seu lugar no mundo. E é justamente o facto de nada na minha história ser especial o que há de mais precioso nela. Graças ao 25 de Abril, O dia inicial inteiro e limpo/ Onde emergimos da noite e do silêncio, do poema de Sophia, todas nós que nascemos em liberdade somos herdeiras da transformação radical que a queda da ditadura nos deixou.
Os 50 anos do 25 de Abril foram, por isso, uma catapulta sociocultural estrondosa que trespassou as três últimas gerações, esvaziando o bordão ‘‘Deus, Pátria e Família’ para que um povo inteiro se movimentasse, metaforicamente e no sentido figurado, do campo para a fábrica e para a universidade. Foi para isto que se fez Abril.
Foto: ©DR