“Vivemos tempos difíceis”. A expressão está gasta. Mas nunca esteve mais suja. Imunda.
Num destes dias acordei e pensei que me tinha acontecido algo sobrenatural, como nos filmes. O quarto estava igual, o bom dia caloroso dos meus filhos também, mas havia uma nuvem carregada, cinzenta.
O poder do preconceito agora verbalizado
Achei que tinha recuado uns bons anos e tinha despertado nos tempos em que as emissões de televisão eram a preto e branco. Mas não, as cores estavam lá e as palavras também. Audíveis. E com eco.
A questionarem o papel da mulher na sociedade. A sugerirem uma falta de valorização do seu estatuto enquanto “dona de casa”. A menosprezarem as suas ambições porque “um homem nunca pode ser mãe”, mas o contrário é dever.
Isto aconteceu no ano em que se celebram 50 anos de democracia em Portugal. Este substantivo (que é por acaso) feminino, almanaque de tantas conquistas, mas símbolo inacabado.
Vozes como estas já há muito que se ouvem por aí, mas há sempre uma certa descrença que até pode ser confundida com otimismo, de que o contágio nunca acontecerá. Achamos que os passos dados são em sentido único e não há como voltar atrás. O problema é que a noção do substantivo pode facilmente ser camuflada e ainda há muita “estrada para andar”.
“Apesar do sofrimento, estou convencida de que as únicas coisas que valem a pena na vida são sonhar e lutar” RTP, 1974 (op. cit.). Faço das palavras de Maria Lamas, as minhas.
E não é por acaso que a cito. Quero usar o jornalismo como exemplo (e que belo exemplo). Começo por mim. Estranho, estou formatada para nunca ser notícia, mas antes poder dar ou ser a voz de quem precisa/não tem.
Abro uma excepção.
Completo este mês de Abril 10 anos da minha carreira jornalística, 9 dos quais foram passados na RTP. Tenho dois filhos, um a caminho dos 4, a mais nova prestes a fazer 2 anos. Sou uma apaixonada pelo trabalho e desdobro-me para conseguir fazer tudo. E surpresa, consigo! Tenho ao meu lado um pai que também é mãe (e não sofre de nenhum “problema mental”) e uma rede familiar que me permite continuar a alcançar os meus objetivos.
Este ano aceitei o desafio de cobrir a campanha eleitoral para as legislativas. O que requer acompanhar um partido durante duas semanas, em todas as ações por todo o país. Perdi a conta às pessoas que me perguntaram “onde deixei os meus filhos”, se os “abandonei”, ou se o “pai estava a conseguir dar conta do recado”. Comentários das pessoas mais banais, homens e mulheres, sem qualquer ideologia fascista, ou até mesmo machista (penso eu). Mas o poder do preconceito está tão enraizado na nossa sociedade que, apesar de o tentarmos cortar de quando em vez, a raiz continua presa à terra e passado um tempo, tal como erva daninha, volta a crescer. Mesmo com pouca água e na penumbra.
Isto provocou em mim sentimento de culpa. Inevitavelmente começo a questionar-me: estarei a ser uma boa mãe? Será o meu lugar em casa? Estarei a fazer as escolhas certas? Quantas mais terão passado pelo mesmo ou pior?
A quantas não lhes terão sido dadas oportunidades de crescer, fazer mais, porque simplesmente nasceram sob a égide daquele que ainda é, lamentavelmente para muitos, o sexo mais fraco?
No país existem 5231 jornalistas com Título de Carteira Profissional. 3064 são homens, 2167 mulheres1.
No entanto, há mais mulheres a estagiar neste momento: 84 contra 65. O paradigma pode estar a mudar, mas o estigma perdura.
Fiz um pequeno levantamento. Não há, neste momento, nenhuma mulher a liderar os principais meios de comunicação social em Portugal. Falo do Global Media Group, do grupo Cofina, Impresa, Jornal Público, Jornal I, A Bola, TVI, CNN e RTP.
Destaque apenas para duas mulheres no cargo de diretoras de duas publicações: Inês Cardoso, no JN, e Diana Ramos, no Jornal de Negócios. Na hierarquia, acima delas está um diretor-geral; no caso do Global Media Group é o recém-nomeado Domingos de Andrade; e, do Cofina, Carlos Rodrigues2.
Reconheço que nos cargos adjuntos ou de subdireção são cada vez mais os nomes femininos a completarem fichas técnicas, mas a verdade é que, até agora, poucos lhes confiaram os mais altos cargos da estrutura3.
Serão menos capazes, menos instruídas? Os números mostram que não. Voltei à Comissão da Carteira Profissional de Jornalistas para ver qual seria a diferença de nível de escolaridade entre ambos os sexos: 1847 mulheres têm licenciatura, mestrado ou doutoramento, enquanto apenas 1566 homens declararam ter esta mesma formação.
Ou seja, há mais homens no setor, dominam as chefias, de acordo com um inquérito realizado pelo ISCTE4, ganham mais e estudaram menos para lá chegar.
São dados que nos obrigam a pensar, mas acima de tudo a não desistir. Principalmente num tempo em que esta forma social de conhecimento se vê ameaçada pelas redes sociais, pelas novas plataformas de streaming, pela informação rápida, mas pior, não verificada, replicada e difícil de corrigir ou apagar.
Terreno fértil para populismos se reproduzirem como “coelhos” e para a liberdade passar a ser livre só para alguns.
Termino voltando a citar Maria Lamas5 que 3 dias depois do 25 de abril de 1974 dizia em direto na RTP: “Sinto-me surpreendida, exaltada, esperançada e ao mesmo tempo espantada. Foi tudo tão rápido. Foi de tal maneira inesperado e era tão urgente, tão urgente que isto acontecesse.” RTP, 1974 (op. cit.).
Está a voltar a ser tudo muito rápido, mas há de facto esperança.
Enquanto escrevia este texto de uma assentada, surge a notícia de que o Parlamento Europeu deu um passo histórico para permitir um maior acesso à interrupção voluntária da gravidez. Foi finalmente aprovada uma resolução que pede que o direito ao aborto seja consagrado na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
“…A gente vai continuar”.
Foto: ©DR