Eram por volta das 8h00 do dia 25 de Abril. Ano de 1974. O meu marido, Bruce Duncan Guimaraens, e eu estávamos a tomar o pequeno-almoço quando tocaram a porta. Era um sócio do meu marido, português, que chegava a correr para nos perguntar se a nossa filha, Rebecca, já tinha saído para a escola. E que sim… ele ia imediatamente buscá-la e trazê-la de volta porque algo de estranho estava a acontecer na cidade.
O 25 de Abril vivido por uma americana a residir no Porto
Surpreendido, o meu marido ligou o rádio na tentativa de encontrar nas notícias uma explicação para aquela inquietação. – “Magdalena, há aqui algo mesmo estranho. Só estão a transmitir a marcha militar dos fuzileiros Royal Marines, o meu regimento…”. Pouco depois, Rebecca, muito animada, entra em casa a contar que ela e um colega de turma estavam sentados no muro da escola a ver passar veículos armados sob o comando do pai do seu amigo. Subiam desde o quartel à beira-rio, Pasteleira acima, em frente ao Colégio Francês, rumo à Gomes da Costa e Boavista.
Pouco tempo tivemos para ponderar aqueles acontecimentos. À porta, novamente, alguém se faz anunciar. Era um amigo holandês, Paul Mans, aflito, porque a sua mulher, Marion, tinha dado à luz três dias antes e ainda estava internada na Ordem da Trindade, por trás da Câmara Municipal do Porto. Ela tinha acabado de telefonar dando-lhe conta de que o edifício da Câmara estava cercado por veículos militares e que se havia refugiado na casa de banho, com o bebé. Sentara-se num espaço sem janelas, de modo a ficarem protegidos de quaisquer tiros que porventura viessem a ser disparados pelos soldados armados. Tudo estava, contudo, muito calmo.
Dera-se a coincidência do médico da Marion ser nosso amigo. Telefonei-lhe imediatamente. Pelos relatos da recém-mamã, ninguém sabia exactamente o que se passava ali. Ela e o bebé estavam saudáveis, pelo que tinha sugerido que Paul os fosse buscar para os conduzir a casa. E teria sido assim se o carro do Paul não estivesse avariado.
– Podemos ir no meu! – disse. Tomámos rapidamente a direcção da garagem onde guardava um Mini azul. Coube-me conduzir porque o Paul estava demasiado nervoso.
A caminho da Baixa do Porto, estranhámos, desde logo, o pouco trânsito. Descemos a rua dos Clérigos e éramos o único automóvel. No mesmo sentido seguiam, a pé, muitas pessoas. O ambiente era de boa disposição. Presença igualmente notada era a dos vários camiões militares com soldados armados. Não fora a presença dos militares e pareceria mais um dia de festa, uma qualquer véspera de São João. Curioso, muito curioso…
Chegando à praça de Liberdade, virei à esquerda em direcção à Câmara. Percebemos, então, que continuar em frente não seria fácil tantas eram as pessoas que enchiam o largo! A espaços, auxiliei-me da buzina para poder continuar. Cuidadosamente. Afinal, nós também tínhamos uma missão: resgatar a Marion e o seu bebé.
Procurei sempre ignorar o que se passava. Tinha a consciência de que o meu carro ostentava uma bandeira americana no vidro traseiro e receava poder estar a presenciar um acontecimento político violento, idêntico ao que tinha visto poucos anos antes na Guatemala. Estava aterrorizada e fechei todos os vidros, apesar do calor daquele dia ensolarado.
Avançando, sai do meio da multidão um senhor que bate no vidro do carro. – “Minha senhora, por que é que está com cara de assustada? Não tenha medo! Estamos a celebrar um grande acontecimento. Estamos em festa!” E, realmente, assim era. Pairava uma alegria que contagiava todas as pessoas. Uma verdadeira festa de São João!
Dali, chegámos sem dificuldade à Ordem da Trindade. Estacionei nas traseiras do edifício da Câmara e esperei que o Paul fosse buscar a esposa e o seu filho. Contrariamente aos meus receios, regressámos a casa são e salvos.
O resto do dia foi calmo, sem surpresas, para além daquelas que o dia, em boa hora, trouxera a Portugal. Alternávamos entre o rádio e a televisão, na expectativa de mais informações. Os meses e anos que se seguiram não seriam totalmente pacíficos, mas essa é uma outra história.
O especialmente marcante para mim foi a alegria das centenas de pessoas que enchiam a praça naquela manhã. Pairava o sentimento de que, aconteça o que acontecer, no Porto, celebra-se sempre a liberdade política. Cumprindo-se, de resto, o desígnio da cidade-berço do movimento liberal ali iniciado século e meio antes. Porto, mais uma vez, Cidade Invicta!
*Professora (ex-Directora do American Language Institute, Porto). Intérprete de Conferência membro da A.I.I.C. – Genebra, aposentada. Membro da Confraria do Vinho do Porto (com grau de Cavaleiro). Graduada Magna Cum Laude pela University of Maryland University College e estudos pós graduados na Universidade de Córdoba, Espanha.
Autora de vários livros em inglês e espanhol.
Foto: ©DR