Todos os anos, pela Primavera, surpreende-se a olhá-los, a esses presos sobre quem – sem que sobre eles os anos passem fixados para sempre, jovens, surpresos de liberdade e alegria, nesse ano mágico de 74 – ano após ano se abrem as mesmas portas da mesma prisão, com um olhar onde se misturam a emoção e a inveja.
A inveja, sim.
Todos os anos, pela Primavera
Levou muito tempo a pensar a palavra certa. Que sentimento era aquele que se somava ao outro, colectivo, obrigatório, a emoção perante as grades finalmente abertas? Demorou-lhe admitir que era a inveja. (Ainda não se tornara moda recordar que é com essa palavra que fecham os Lusíadas). Mas que outra coisa poderia ser, afinal, se só eles, eles, frente a quem se abriu essa última porta, esse gradão entre o interior e o pátio do Forte de Caxias, puderam sentir inteiramente o significado desse dia, a liberdade reencontrada, a liberdade política, certamente, mas também (mas sobretudo?) a física, nenhuma porta mais, nenhuma grade, entre eles e os que os esperam, entre eles e os mil gestos quotidianos cuja ausência se descobre custar tanto a suportar, tirar da estante um livro ao acaso, abrir uma cerveja, pôr um disco a tocar fora da curta hora autorizada, estiraçar-se no velho divã, discar no telefone o número de um amigo. Luxos irreconhecidos como tal até então, tomar banho em banheira, dormir sem horário, acender um fogão, comer em prato de louça, pedir uma bica escaldada, sorrir a alguém que não se conhece, apagar uma luz, rodar a chave numa porta – coisas de todos os dias, importantizadas pela ausência.
Então, o abrir da porta, essa porta que todos os anos se abre de novo sobre eles, jovens como então eram, sem que nada nos seus traços revele o cansaço ou a desilusão dos anos que se seguiram, traz-lhe a inveja do momento único e irrepetível, daquele instante fugaz em que tudo foi possível, mesmo aquilo que nunca chegaria a sê-lo.
Inveja-lhes esse momento que não teve, essa possibilidade de juntar, no mesmo abraço, no mesmo riso, a liberdade de todos e a sua própria, a festa individual e a festa colectiva.
Teria sido bom, pensa, ter saído da cadeia nesse exacto momento, sem o sentimento de culpa dos ficados para trás, porque todos estariam saindo ao mesmo tempo.
E o 25 de Abril é também isso, ou antes, a memória disso, desse sair lento, quase contra vontade, o coração dividido entre quem espera lá fora e quem, na cela que se acaba de deixar, ficou de repente mais preso e indefeso, das portas que se fecham à passagem, repetindo, no sentido inverso, o ritual do dia da entrada.
Da última porta desse primeiro dia, a castanha, aquela por onde espreita o olho de quem guarda, para impedir a fuga ou o suicídio, porque nenhum captor gosta que o capturado se lhe escape, excepto quando o suicídio dele seja obra sua. Das grades em frente, duplas, abrindo sobre o rio ou sobre um muro outro, com os passos de um guarda como única paisagem. Das paredes brancas, de que se aprendem uma a uma, de tanto as contemplar, as rugosidades. Dos apitos a ritmar o dia, do bater das grades noite após noite, coisa de verificar se continuavam inteiras, se preso nenhum preparava a fuga através delas. Da voz que anuncia: “Prepare-se para sair para interrogatórios”. A tosse de um companheiro, no corredor ao lado, indicando o seu regresso de interrogatórios. O choro solto de uma presa, na cela da frente, ou o arfar asmático, ofegante, de alguém a sufocar numa cela próxima. Os risos das presas muitas jovens na cela ao lado, cada dia fazendo da prisão um lugar habitável onde a vida continue – até conseguirem pôr nela o cheiro de bolos acabados de fazer. O grito da mulher chamando o filho, no bairro de barracas em frente da prisão. Os pesadelos dos presos adormecidos. O toque do clarim anunciando a morte do ditador. O som de passos e o som de portas. Até mesmo, um dia, o mais inesperado, o mais esperado dos sons, o assobio de uma coladera, de um amigo que diz: “Sou eu, estou vivo, estou bem, estou a passar à tua porta”. E a voz última: “Junte as suas coisas para sair em liberdade”-
Liberdade. No dia 25 de Abril e nos seguintes, lembra-se, andara perdida pelas ruas, a tentar reter para sempre o que podia significar essa palavra. Da gente que chorava à gente que ria, dos que tinham cravos nas mãos à jovem que desenhava foices e martelos vermelhos nos carros militares que passavam. Lembrara-se de Hemingway, porque Lisboa era, nesses dias, uma festa móvel.
Mas quando lhe perguntam o que foi para si o 25 de Abril, é ainda um som o que lhe ocorre. Ouviu-o nos corredores do Metro da Rotunda. Um som conhecido e desconhecido, um som até então clandestino e nesse dia solto, vibrante, irreprimível, que foi reconhecendo enquanto se aproximava. Surgiam-lhe as palavras na memória, em línguas várias: “De pé, oh vítimas da fome… Il n’y a plus de sauveur suprême, ni Dieu, ni César ni tribuns… Arroupons-nous, hermanos.”
Era um cego, no seu acordeão. O mesmo que, na véspera, pedia esmola, ao som da Júlia Florista.
NOTA: Tiveram o SETE JORNAL e o Paulo Vila a gentileza de me convidarem a participar com um texto na sua celebração dos 50 anos do 25 de Abril. Perdida no meio de outras escritas, apresentei uma contraproposta: admitiriam publicar “um texto ‘memorialístico’, mas idoso”?
Não foi só preguiça. É que esse texto (este que o jornal acolhe), escrito há 25 anos, corresponde exactamente ao que senti perante as imagens da saída dos presos do Reduto Norte do Forte de Caxias. E tornou-me mais claro, enquanto o escrevia, esse sentimento de culpa de sair em liberdade, deixando para trás outras pessoas que continuariam privadas das coisas de que, mesmo sem o saber, sentira tanto a falta.
E, neste ano em que comemoramos o 50.º aniversário do 25 de Abril, sentindo a Liberdade sob ameaça crescente em redor, parece-me particularmente importante sublinhar que nenhum de nós é inteiramente livre quando há outros a quem a Liberdade é negada e lembrar esse dia ainda sem desilusões futuras, “em que tudo foi possível, mesmo aquilo que nunca chegaria a sê-lo.”
Não, não conseguiria escrever melhor, 25 anos passados.
Foto: ©ATD – Projecto Trilhos (Lisboa, 2012)