Sou feita de dois mundos

ZITA FONSECA
Jornalista
25 de Abril 2024
Sou feita de dois mundos

Sou uma rapariga da aldeia nos anos 60 e 70 do século passado, última de um rancho de oito filhos de um casal de lavradores com mais bens que dinheiro, católicos, conservadores e solidários. Também sou uma mulher de hábitos citadinos que gosta de livros, viagens, conversas pela noite dentro, museus, trapos e futilidades que tornam a vida mais aveludada. Mas nada disso me fez esquecer o meio em que vivi até aos 15 anos.

Tenho idade suficiente para me lembrar da partida do meu irmão mais velho para Angola, das peregrinações familiares ao Sameiro para que voltasse são e salvo e dos anos que mediaram e em que lá em casa não havia Natal. Lembro-me de quando nascia um rapaz e se dizia que era “mais um para a guerra”, porque na cabeça das pessoas a Guerra Colonial nunca ia acabar. Lembro-me do meu pai ajudar um vizinho, cujo filho morreu, a tratar dos papéis para receber a “pensão de sangue”. Lembro-me dos aerogramas mandados pelo meu irmão e por namorados, vizinhos ou “afilhados de guerra” das minhas irmãs mais velhas.

Fui a única da minha turma da escola primária que prosseguiu estudos. Um privilégio de que não tive noção aos dez anos. Também fui a primeira rapariga da minha aldeia a frequentar uma faculdade, o que não me dá nenhuma alegria. Tive privilégios só por nascer daqueles pais e nem sempre tive consciência de que isso não deveria ser assim. Fui educada a obedecer sem questionar, como era comum numa família com a dimensão e as características da minha.

Confesso que não achei estranho que na escola da minha aldeia eu calçasse sapatos quando outros calçavam tamancos, mas lembro-me que a certa altura quis deixar de levar o pão com manteiga ou marmelada para o lanche da manhã, porque mais ninguém levava. Comecei a primária a escrever na lousa numa sala com o retrato de António Salazar e acabei-a já a escrever com esferográfica e a pintar com marcadores. Um progresso e tanto em quatro anos – mas o Salazar ainda lá ficou mais um tempo!

Tinha 11 anos no 25 de Abril de 1974. Na Escola Preparatória António Correia de Oliveira fomos mandados para casa a meio da manhã a pretexto de uma reunião de professores. No laboratório de análises do hospital trabalhava uma enfermeira amiga da família que me dava boleia para casa. Fui lá ter e ela disse-me que tinha havido um golpe de Estado. Nunca tinha ouvido semelhante coisa. “O que é isso?”. “Prenderam o Marcello Caetano”, respondeu ela. Eu achava as “Conversas em Família” na RTP uma chatice, mas o Marcello Caetano (sempre muito aprumado, de óculos e fato escuro) fazia-me lembrar o meu pai. “Ai, coitado”, respondi. “Não digas isso! Já devia ter ido há muito!”, repreendeu-me a D. Graça que tinha trazido de França ideias de esquerda, como depois percebi.

Na altura fiquei um bocado encabulada com o raspanete, até porque não conseguia descortinar que mal teria feito o Marcello para o prenderem. Ele até tinha ar de boa pessoa. Quando cheguei a casa, o ambiente também não era dos melhores. O meu outro irmão era marinheiro, estava no Arsenal do Alfeite. A minha mãe não sabia nada dele e estava numa aflição. Foi assim que vivi o dia que mudou todos os outros. Mas isso é apenas um aspecto lateral.

O mais importante que a Democracia proporcionou às mulheres portuguesas foi uma mudança de mentalidades que trouxe tudo o resto e cujo alcance só pode ser avaliado por quem foi vivendo as profundas transformações que se foram operando fora dos grandes centros urbanos.

O alargamento da escolaridade obrigatória para além do ensino primário levou as raparigas para lá dos limites das aldeias. As associações que se criaram um pouco por toda a parte, os cafés onde as mulheres começaram a entrar, fomentaram o convívio entre uma juventude ávida de coisas novas. Hoje, tudo isto pode parecer pouco, muito pouco, mas foram os primeiros passos. E à medida que a escolaridade obrigatória se foi alargando, mais as mulheres foram conquistando espaço.

Mas há um aspecto absolutamente fundamental neste processo: o controlo da natalidade passou a fazer parte das políticas públicas de saúde. O acesso generalizado à contracepção foi verdadeiramente libertador. E se a Igreja Católica insistia em pôr o ferrete do pecado em cima das mulheres, impingindo-lhes o famoso “método da temperatura”, muito mais falível do que uma previsão meteorológica, muitas tiveram a coragem de mandar os padres e as beatas às urtigas e decidir por si.

Nunca me esqueci da prédica do padre da minha terra quando lá fui buscar os papéis para me casar, no longínquo ano de 1981: “Sabes o que a Igreja diz quanto ao número de filhos? É os que Deus nos quiser dar e os que nós pudermos aceitar. Eu sei que hão para aí uma coisas que se tomam, mas só fazem mal à saúde e não há necessidade nenhuma. Toda a gente sabe que se não se usar o matrimónio em certos dias, não corre o risco de ter mais filhos do que os que quer”. Fiquei em pânico quando percebi que o meu futuro marido estava perdido de riso. A culpa foi da expressão “usar o matrimónio”.

Nessa altura eu era uma jovem universitária e já tinha trocado a aldeia pela cidade há alguns anos. Dei-me tão bem que, contrariando os desejos da minha mãe, jurei a mim mesma que só lá iria de visita. Mas o que lá vi, mais do que o que vivi, marcou-me. Não precisei de trabalhar no campo para perceber a dureza daquela vida. Sei o que é viver num lugar sem iluminação pública (onde à noite se podia “apanhar o diabo à unha”), num tempo em que só ia ao médico quem tinha dinheiro. Para comprar um pacote de manteiga era preciso ir a Esposende ou a Barcelos, porque não era coisa que se vendesse na mercearia. A base da alimentação da maior parte das pessoas era bacalhau, sardinhas frescas ou salgadas, conforme a época do ano, toucinho, batatas e couves.

Concluindo, a rapariga da aldeia viu isto tudo e não esqueceu. Estudou, fez-se gente, casou muito cedo, mas viveu a vida que quis e fez coisas que dificilmente poderia ter feito se a sociedade não tivesse sofrido as grandes transformações do pós-25 de Abril. Mas, há tanto, tanto, tanto caminho para andar e tanta gente a querer voltar para trás. E quando vejo saudosistas do “tempo da outra senhora”, das duas uma: ou tinham grandes privilégios que perderam ou são completamente ignorantes. Também pode dar-se o caso de serem irremediavelmente parvos.

Foto: ©DR