“Elas disseram à mãe e à sogra que isso era dantes.”
As palavras de Maria Velho da Costa a contar dos dias em que as mulheres fizeram a revolução: a do salário igual, do direito à licença de maternidade, da casa, do acesso à saúde, de sair do analfabetismo a que estavam condenadas, de deixarem de contar os filhos entre os mortos e os vivos.
Plantar o cravo e regá-lo
As mulheres conquistaram muito, mas não fizeram a sua revolução. Foram atropeladas pelas tantas urgências e com elas tantas outras lutas foram ficando em lista de espera. No deve e haver dos avanços e recuos, as mulheres ganharam quase tudo e ficou quase tudo por ganhar.
Outras duas Marias1, Maria Teresa Horta e Isabel Barreno, haveriam de criar o Movimento de Libertação das Mulheres. Um movimento com uma existência breve e que no seu manifesto de 1975 afirmava o direito ao aborto e ao corpo, o reconhecimento do trabalho doméstico, o direito a creche. Foram muito literalmente atacadas pelo conservadorismo, à direita e à esquerda, e ainda hoje temos a sua agenda por cumprir.
Demoraríamos 23 anos até ao referendo de 2007 que reconheceu o direito à interrupção voluntária da gravidez, com uma das leis mais recuadas da Europa e a que se juntam entraves humilhantes e ilegais impostos por instituições de saúde por todo o país. Seria preciso esperar por 2015 para que a lei não considerasse menos ofensiva a violação dentro da família ou por figura de autoridade. O trabalho doméstico continua fora do Código do Trabalho e não há qualquer garantia de vaga gratuita em creche.
Mudou tudo, claro que sim, mas a violência doméstica é crime público há mais de duas décadas e o femicídio continua a ser um dos maiores problemas de segurança interna do país. O salário igual é da lei, mas não da vida. Os cuidados continuam entregues a elas, quer queiram quer não queiram. E se são informais não são pagos e se são formais são mal pagos.
Com o patriarcado, todas as outras estruturas de opressão que ficaram e que se mantêm, de classe mas não só, são razão de atraso e, hoje, são trincheiras da extrema-direita.
“Isso era dantes”, sim, é verdade. Mas não completamente. Como na frase certeira da penúltima carta das Novas Cartas Portuguesas – “Em boa verdade vos digo: que continuamos sós, mas menos desamparadas”.
“O gosto que dá pensar em conjunto com alguém que diz o contrário do que a gente está a dizer…”
Maria de Lourdes Pintasilgo foi a única mulher a chefiar um governo em Portugal. Um curto mandato de 5 meses como Primeira-ministra, com passos decididos na universalização da proteção social, e a primeira mulher candidata à Presidência da República. Numa das suas últimas entrevistas2, reafirma a importância da utopia e do desassombro de descobrir novos caminhos. Afirma também a importância de pensar em conjunto.
Longe de imaginar o que viriam a ser as redes sociais e a imposição de bolhas de isolamento dos seus algoritmos. A sua frase sobre o gosto do contraditório é pista de caminho para estes dias. “Pensar em conjunto” constrói democracia. Quando o poder económico encolhe – e como encolhe – a soberania popular, este pensar torna-se ainda mais urgente.
Portugal mudou muito desde 1974, mas não construiu o socialismo e não há cartaz liberal que torne verdade o que é mentira. Os setores estratégicos estão quase todos privatizados, a habitação pública é residual, a floresta é quase toda privada, a contratação coletiva protege uma minoria de trabalhadores. Temos muito por onde começar a pensar como fazer melhor. Pensar com outros, ou seja, ir à luta.
“Fládu fla ka tem simenti” ou Falar por falar não tem semente
O verso é de Mayra Andrade em Dimokránza (Democracia)
Não vale repetir “a paz, o pão, habitação, saúde, educação” sem os semear para hoje e para depois. Repetir o que se fez, não é consolo para o que falta fazer: o serviço nacional de cuidados que nunca se construiu, a justiça que nunca foi para todos, a cultura que exige serviço público, a mobilidade para unir o território e a proteção dos bens comuns – a água, o solo, o ar – do absurdo extrativista.
Cada conquista, em si mesma, parece absurdamente distante e impossível. No início dos anos 70 pareceria impossível a Escola Pública para todos ou a criação do SNS. Vistos isoladamente, tais direitos são impagáveis e incapazes de alcançar uma maioria social. Assim não foi, porque não foram objetivos isolados. Foram revolução! Foram partes integrantes da Liberdade – esse projeto popular radical e extraordinário. Uma vez conseguidos, impossível seria um país que não os tivesse construído.
Hoje, que sementes temos? Teremos a afirmação contra a extrema-direita e a sua violência. E teremos de a fazer com todas as forças que temos. Mas sem mais, ganhamos força? Semeamos democracia? Que projeto comum se pode declinar nas tantas construções por fazer e que são, serão, também Liberdade? Que urgência pode disputar maioria social, obrigar a pensar em conjunto, fazer um povo querer tomar o poder?
Correr pela vida. 2030 está ao virar da esquina e a descarbonização não aconteceu. Cientistas avisam que o aquecimento global é mais rápido e os seus efeitos mais extremos do que previam há uma década. Não temos tempo, temos de ter ação. Um enorme plano de investimento público e de emprego, de salário e de direitos, que não deixa ninguém para trás. E esse enorme projeto de nos salvarmos juntos, juntas, é mesmo feminista ou não será.
Celebrar 50 anos de cravo morto ao peito é coisa do passado. Este é o tempo de plantar o cravo e garantir-lhe a água, o solo e o mais.
Foto: ©DR