O Abril, que há que comemorar e o que falta conquistar

MARIA CERQUEIRA
Jornalista
25 de Abril 2024
O Abril, que há que comemorar e o que falta conquistar

Vi nas redes sociais um pequeno antigo vídeo do valioso arquivo da RTP. Uma declaração feminina sobre o trabalho desigual entre géneros. Só que, no fim, a mulher tem que tratar dos filhos, da casa… e tudo mais. Dizia essa mulher, corajosa, que no fim do trabalho os homens vão para o café, conversar com os amigos de cerveja na mão. Triste e lamentavelmente, ainda é a realidade de muitas mulheres – e para quem vive no mundo rural é ainda mais comum.

Menos ofertas de emprego e menos transportes públicos implicam que muitas mulheres fiquem sujeitas e presas ao trabalho no campo e doméstico. As tarefas invisíveis, o trabalho que só se nota quando não é realizado. Lembro-me sempre do filme “As Pontes de Madison County” quando penso nisto. O papel da dona de casa, Meryl Streep, que coloca as refeições na mesa e cuida da casa onde nem marido nem filhos reparam que ela está lá. As portas que batem, a rotina…

Não me recordo da Revolução dos Cravos, não me lembro de sentir o 25 de Abril chegar. Talvez tenha reparado na minha avó Rosalina, mais agitada. As notícias só chegavam nos jornais que embrulhavam as sardinhas e não eram para ler. E bem, nem eu sabia ainda ler. Lembro-me de um jovem cantar nos caminhos e de me sentir surpreendida com isso. Não eram os cânticos da igreja nem as cantigas dos trabalhos no campo que ele cantava. Eram as músicas do Sérgio Godinho.

Os sinais que guardo como exemplos de coragem ou rebeldia foram transmitidos por duas jovens que viviam próximas da casa dos meus avós. Quase em simultâneo, cortaram o cabelo, vestiram calças, e fugiram para Lisboa. Acho que nunca mais as vi, espero-as felizes e realizadas! São elas as minhas duas Marias. Não pela fuga! Recordo-as pela ousadia de terem lançado ao lixo o carrapito apanhado, a saia que prende o movimento, a apresentação restritiva que todas se sentiam obrigadas a respeitar. O que mais me encantou, foram as calças por elas vestidas, e o que isso significava. Por essa altura, os rapazes mais velhos vestiam calças “à boca de sino”, fumavam com vaidade e aos domingos à tarde desapareciam da aldeia. As calças delas fascinaram-me sempre pelo que simbolizavam, por serem delas, também delas.

Só muito mais tarde, conheci a história de vida e coragem de “As Três Marias” e as “Novas Cartas Portuguesas”. Maria Velho da Costa, Maria Teresa Horta e Maria Isabel Barreno revelaram muitas situações de discriminação prejudiciais para a mulher em Portugal. “As Novas Cartas Portuguesa” semearam e abriram caminho para a reivindicada (e por concretizar) igualdade de género no nosso país. Que coragem!

Quando a televisão chegou à minha freguesia, vi a Natália Correia nos debates do Parlamento. Fascinante, bem-falante e com uma dose de confiança que as mentes pequenas confundiriam com loucura. É outro rosto importante do meu Abril de menina. E também o da Snu Abecassis.

Quando escrevo sobre o Abril que falta cumprir, penso no SNS para todos e com mais condições. Para os utentes e para quem nele trabalha. Há investimentos urgentes e há que garantir melhores serviços. Somos dos melhores do mundo na saúde? Sim! No entanto, não se admitem as longas listas de espera para consultas, cirurgias e exames. Não se pode aceitar que os idosos fiquem sem a medicação porque tem preços elevados. Que ainda não exista uma rede publica de saúde oral, nutrição e psicologia. É urgente uma atenção especial e sensibilidade para a saúde mental. Falta um sistema de justiça mais célere e mais igualitário – quem não tem dinheiro também não consegue bater à porta dos tribunais.

E o ensino público? Tenho acompanhado manifestações sucessivas nas ruas. Este conflito atinge a comunidade escolar. A omissão do tempo de serviço e a não progressão na carreira estão a abalar a normal aprendizagem dos alunos. Os militares e as forças de segurança queixam-se de salários baixos e também estão revoltados. Há mais pessoas a dormir nas ruas, algumas com emprego, mas que não conseguem pagar uma casa.

Cinquenta anos depois, no ano em que se comemoram as conquistas do 25 de Abril, é também tempo de pedir e sonhar com melhor. Fazer a festa, ir ao teatro, ao cinema e a exposições. É tempo de investir na cultura. Recomendo o “Guião para um país possível”, de Sara Barros Leitão. Baseado nos Diários da República dos 50 anos de democracia, o Guião anda em digressão nacional, depois da estreia no Teatro Sá de Miranda, em Viana do Castelo. Já a exposição sobre a vida e obra de Maria Lamas está na Fundação Calouste Gulbenkian, faz bem a todos e é de entrada gratuita.

É obrigatório conhecer a obra sobre o 25 de Abril de 1974 do extraordinário Alfredo Cunha. Está em Lisboa, está em livros e anda pelo país. Na Cordoaria Nacional, o fotógrafo Eduardo Gageiro relembra Abril com a exposição “Factum”, com cerca de 170 obras.

Voltando à aldeia onde cresci, gostava de voltar a ouvir cantar liberdade pelos caminhos da minha ou das vossas terras. A liberdade de pensar, reivindicar e votar!
Obrigada a quem nos trouxe “Abril”.

Foto: ©DR