Memórias e estórias que me trouxeram até aqui

MARIA ELISA BRAGA*
25 de Abril 2024
Memórias e estórias que me trouxeram até aqui

Cambambe, 1961
As primeiras recordações de infância remontam a 1961, na construção da barragem de Cambambe, no rio Cuanza, a 200 km de Luanda, à festa de aniversário pelos meus 4 anos. Foi um dia bonito, muita animação, muitas prendas, amiguinhos filhos dos colegas do meu pai e respetivas famílias. O pior foi a noite, esperava que os meus pais adormecessem e, à socapa, “de gatas”, entrava no seu quarto e aninhava-me por baixo da cama, tanto era o medo.

O alarme da barragem soou. O meu pai pegou na arma que tinha à cabeceira da cama, saiu enquanto eu e a minha mãe ficámos à espera que chegasse vivo a casa. Havia tentativas de ataques “terroristas” à barragem, sendo a defesa feita pelos trabalhadores. De madrugada regressou, dizendo que tinha sido um animal a tentar passar pelas cercas. Acreditei sempre nele… inocente.

Os primeiros contingentes militares só começariam a chegar a Angola nos meses seguintes. Esta foi a minha primeira perceção da guerra e dos primeiros movimentos guerrilheiros pela libertação de Angola. Perguntava-me sempre porque havia “terroristas”, “turras”? Porque havia guerra? Afinal, éramos nós os portugueses que estávamos na terra deles, dos angolanos.

Luanda, 1964 -1965
Memórias dos fins-de-semana em que, sistematicamente, recebíamos militares destacados na “Guerra do Ultramar”, assim lhe chamavam. Sorte deles que, estando no mato e tendo-se portado bem ao longo dos meses, tinham o privilégio de ir passar um fim-se-semana a Luanda. Pouco falavam do que passavam. Chorar era recorrente. As saudades da família e dos amigos, o perigo constante em que viviam, eram terríveis. Só queriam regressar às suas terras e para junto dos seus. Só queriam sobreviver à guerra.

Lisboa, 1969
Cais da Rocha do Conde de Óbidos. Era inverno. Oito da manhã e fazia muito frio. Era o tão ansiado dia da chegada de Angola do contingente do meu tio B., no navio Vera Cruz. O meu avô e todos nós, numa expectativa angustiante para ver o tio descer as escadas e podermos abraçá-lo. Tanta era a saudade que as lágrimas corriam pelas nossas caras, sem as conseguir controlar. As horas passavam e a ansiedade aumentava: o tio B. não aparecia. Perguntávamos por ele aos colegas que encontrávamos, até que nos disseram que o tio B. não tinha embarcado. Tinha ficado em Angola.

O meu avô chorava como uma criança, não queríamos acreditar. Passado pouco tempo adoeceu gravemente. No entanto, ainda consegui ler-lhe a resposta à que carta enviei para Angola e que foi respondida pela namorada do tio B., pedindo em nome dele toda a desculpa do mundo por não ter comunicado ao pai a sua opção. O meu avô faleceu de desgosto poucos dias depois. Ficou-me sempre uma mágoa tremenda.

Lisboa, 1973
Eu, aluna do Liceu Feminino Dona Filipa de Lencastre. As meninas não podiam usar calças, era assim naquele tempo. Um dia resolvemos fazer greve, passávamos muito frio, pernas sempre descobertas e as calças protegiam-nos. Resolvemos, então, durante os intervalos, no recreio, abrir o fecho das saias e puxá-las por baixo da bata, quase até aos pés. Fomos chamadas à reitora que não nos castigou, mas deu-nos um ralhete muito grande. As meninas não podiam fazer greves. Foi assim que, na altura, lhe chamamos “a greve das saias descidas até aos pés”.

Entretanto, um amigo tentava mobilizar-me para apoiar a Ação Nacional Popular, de Marcello Caetano. Não era mesmo essa a minha posição. Era o oposto. Era a Liberdade. E as eleições eram uma fraude. Recusei frontalmente. Uns meses depois, a 26 ou 27 de abril, encontrámo-nos junto ao Cinema Londres. Esse amigo, na sua maior desfaçatez, rejubilava e festejava o 25 de Abril…

Por estes anos, a revista Mundo da Canção era para mim de leitura obrigatória e dedicava-me a ler os artigos e entrevistas dos novos cantores, a poesia da nova corrente de escrita da canção de intervenção. O que mais adorava era decorar os poemas fantásticos que publicavam. Inconscientemente, estava a iniciar uma carreira profissional, ligada à música, à poesia e às artes.

Lisboa, 25 de abril de 1974
Fomos acordados pelos pais, eram sete e meia da manhã. Era suposto irmos para as aulas, mas ouvimos “está a haver um golpe militar, têm de ficar em casa”. O pai foi trabalhar e nós não podíamos sair. Alvoroço total. Ansiedade, também. E muita! Estava a acontecer o que tanto desejávamos e sabíamos que estava iminente, avisados por um primo Oficial de Marinha, a trabalhar com a NATO; eles sabiam…

À hora do almoço, o pai autoriza os filhos rapazes a sair e lá foram eles excitadíssimos para a Baixa ver a revolução. As meninas continuavam recolhidas com a mãe, pois, apesar de já haver milhares de pessoas na rua, dos cravos vermelhos enfeitarem casacos, camisas ou cabelos, não estava assegurado ainda o sucesso do “Golpe Militar” e do Movimento das Forças Armadas, dos seus Capitães de Abril e, sem dúvida, de Salgueiro Maia.

Ao fim do dia, os irmãos regressaram a casa e soubemos que tinham estado escondidos debaixo de bancos em vários pontos da cidade e no Quartel do Carmo, pendurados nas árvores. Assistiram à saída da Bula que transportava Marcello Caetano e outros ministros, tendo passado também pela sede da PIDE e pelos confrontos que aí existiram.

A rádio e a televisão transmitiam os comunicados das Forças Armadas e as marchas militares eram separadores infindáveis.
Estava em curso a revolução que mudaria o futuro de Portugal e poderíamos finalmente sair do nevoeiro em que vivíamos para abraçar a luz da Liberdade.

Lisboa 1 de Maio de 1974
O telefone em casa não parava de tocar. Era um entra e sai de amigos em frenesim para organizarmos o grupo que iria participar na primeira grande manifestação do 1.º de Maio, recém-decretado feriado nacional e Dia do Trabalhador. Juntámo-nos na Avenida de Roma e iniciámos a descida pela Almirante Reis, em direção à Alameda D. Afonso Henriques.

Sentíamos o chão, mas era impossível vê-lo. Seguíamos de braço dado e gritávamos palavras de ordem que mais tarde identificávamos com algum partido. Cantávamos o “Grândola Vila Morena”, “Venham Mais Cinco”, “Eles não sabem nem sonham que o Sonho comanda a vida… da Pedra Filosofal”, entre tantas outras. No entanto, a palavra de ordem mais repetida e com mais forte entoação, ao longo daquela tarde, foi mesmo “O Povo está com o MFA”.

Sublinho e destaco aqui um excerto das palavras de José Carlos Vasconcelos para a revista Visão, sobre o momento que ele próprio viveu: “Foi-se formando um cada vez mais caudaloso, impetuoso e imparável rio de Povo”.

A Alameda D. Afonso Henriques, a Avenida Almirante Reis, a Praça do Areeiro e, no final, o Estádio 1.º de Maio transbordaram de pessoas. Mário Soares e Álvaro Cunhal, regressados do exílio, discursaram no comício. Estava em marcha a Liberdade.
Diz-se que Lisboa viveu uma manifestação de cerca de um milhão de pessoas.
Eu acredito porque vi.
A Liberdade estava mesmo a passar por ali…
Eu estive lá!
25 Abril – Um não redondo à guerra colonial. Um sim para sempre à Liberdade.

*Vereadora na Câmara Municipal de Barcelos com os pelouros da Cultura, Turismo e Artesanato

Foto: ©DR