Há 50 anos o nosso país tornou-se livre e democrático. Abriram-se também as portas para se tornar um país mais científica e tecnologicamente avançado. Será talvez tentador pensar que o progresso teria acontecido de qualquer forma, mas basta comparar o Portugal do Estado Novo com outros países na mesma época para vermos que isso não é verdade.
Educação e Ciência: as dádivas da democracia que a poderão salvar
A ditadura mantinha-nos estagnados em inúmeros aspectos, incluindo a educação, ciência e tecnologia. Convinha ao regime que a população não tivesse acesso à educação e não soubesse pensar por si mesma. Pessoas que sabem pensar por si mesmas são muito mais difíceis de subjugar.
Após o 25 de Abril, deu-se uma democratização do acesso à educação e a investigação científica em Portugal ganhou um enorme impulso, sobretudo com a adesão à União Europeia (já não estávamos “orgulhosamente sós”). O número de universidades, politécnicos, e centros de investigação explodiu e Portugal é hoje um país com uma comunidade científica robusta e activa, que em muitas áreas está a par ou mesmo adiante de outros países europeus.
Hoje podemos ter orgulho em termos investigação de topo em biologia, astrofísica, oceanografia, física teórica, medicina, química, energias renováveis e tantas outras áreas. Portugal poderia talvez ser ainda melhor se conseguisse reter melhor os cientistas que forma e estancar a “fuga de cérebros” (nome dado à perda de cientistas e académicos altamente qualificados que saem do país para trabalhar no estrangeiro). Mas não tenhamos dúvidas: sem o 25 de Abril não haveriam sequer esses “cérebros” para perder.
Hoje temos a população mais qualificada de sempre em Portugal. Antes de 1974, grande parte era analfabeta; hoje, o analfabetismo está praticamente erradicado nas gerações que nasceram depois da Revolução dos Cravos. E quase metade dos jovens portugueses tem um curso superior. Estas foram das maiores conquistas da nova sociedade democrática. A nível pessoal, sempre fui muito consciente destas conquistas.
Os meus pais, e a maioria das pessoas da sua geração, não tiveram acesso a estudos para lá da 4.ª classe, de onde saíam sabendo ler, escrever e contar… mas pensar criticamente, muito pouco. Assim convinha ao regime. Tenho a noção muito clara de que, se tivesse nascido na década de 50, como a minha mãe, sendo de uma família humilde de uma aldeia minhota, teria muito provavelmente tido o mesmo destino: sair da escola depois da 4.ª classe para ir trabalhar no campo e ajudar a família. Sobretudo sendo mulher.
Ser dona do meu destino e ter a oportunidade de estudar muito para além das habilitações académicas dos meus pais, de me tornar cientista e de passar a minha vida a investigar o Universo teria sido um sonho quase impossível para alguém com as minhas raízes. Se não houvesse muitas mais razões, bastaria esta para estar eternamente grata aos Capitães de Abril!
As conquistas do 25 de Abril são óbvias. Talvez até demais – acabamos por tomar como garantido todo este progresso e a esquecer que o acesso democrático à educação e os avanços científicos e tecnológicos não foram sempre a nossa realidade. Mas é imperativo que não nos acomodemos. Precisamos de manter a sociedade livre e democrática. E, para isso, precisamos de manter o acesso à educação para termos um público bem informado, que saiba pensar.
Eventos recentes, em Portugal e no mundo, como o movimento anti-vacinas, mostram o quão perigosa pode ser uma débil confiança das pessoas na ciência, resultado da falta de literacia científica e capacidade de pensamento crítico. Cada vez mais o eleitorado se deixa iludir pelas soluções aparentemente fáceis dos populistas e pela desinformação e teorias da conspiração que abundam na internet.
Ao mesmo tempo, a população descontente com o estado de coisas começa a deixar-se levar por uma onda política de saudosismo ultra-conservadora acompanhada, muitas vezes, por um discurso anti-democrático. É notável que estas correntes políticas (e semelhantes no estrangeiro) também tendem a ser contra a ciência. Porquê? Porque a ciência é progressiva e, tal como a verdadeira democracia, assenta em factos reais e centra-se na ideia de que qualquer pessoa tem o direito a procurar e entender a verdade e a pensar por si mesma: a verdade não é um monopólio da autoridade.
A ciência também nos dá uma perspectiva do mundo mais abrangente e tolerante – uma perspectiva cósmica: vista do espaço, a Terra não tem fronteiras e, à escala cósmica, as semelhanças entre todos os seres humanos são muito mais importantes do que as diferenças. Não será talvez por acaso que a revolução científica da Renascença no século XVI ocorreu a par com os primórdios do pensamento democrático moderno que rege a nossa sociedade.
Mas, atenção, não podemos confundir a liberdade de pensamento individual com a noção de que a opinião de todos vale o mesmo, independentemente de como foi adquirida – sobretudo em questões que precisam das respostas da ciência. Por exemplo, como lidar com uma pandemia global ou o problema urgente das alterações climáticas causadas pela actividade humana.
Numa democracia saudável, sim: o voto de cada indivíduo tem que valer o mesmo. Mas uma democracia saudável tem que ter eleitores bem informados e com capacidade de distinguir factos reais de discursos populistas que apelam aos piores instintos das pessoas. Nesse aspecto, as democracias ocidentais estão em crise. A internet levou a uma aparente democratização da informação, que muitos confundem com democratização do conhecimento e sabedoria. Os meios de comunicação social também não ajudam e, muitas vezes, dão tanto ou mais tempo de antena a fanfarrões sem um pingo de formação sobre o assunto do que a especialistas com provas dadas.
Acredito que a única forma de resolvermos isto é continuarmos a melhorar a literacia científica do público. Se as pessoas souberem como a ciência funciona, terão mais capacidade de distinguir o trigo do joio e saberão pensar por si próprias – isso só pode ajudar a democracia. Para isso, temos de continuar a acarinhar estas dádivas do 25 de Abril: o acesso livre à educação e o progresso científico.
*Astrofísica e investigadora – Universidade da Austrália Ocidental (UWA)
Foto: ©JAMES CAMPBELL