E agora?

ISABEL COSTA BRAGANÇA*
Enfermeira
25 de Abril 2024
E agora?

Meio século decorreu desde o dia em que, no misto de emoções características da pré-adolescência, tento decifrar os rostos dos que me rodeavam: “vai ser uma desgraça”, diziam uns, “vamos poder falar sem medo”, diziam outros.

A liberdade de expressão é, sem dúvida, um dos valores fundamentais e estruturantes duma sociedade justa e igualitária onde a igualdade de oportunidades tem de ser garantida independentemente das características culturais, étnicas ou de género.

Para as mulheres, uma das principais conquistas desta revolução social foi o reconhecimento dos seus direitos civis e políticos. Antes de 1974, as mulheres em Portugal enfrentavam restrições significativas na sua participação na vida política, incluindo a capacidade de votar ou concorrer a cargos públicos em igualdade de condições com os homens.

Também o acesso das mulheres à educação superior e à construção de uma carreira estavam fortemente condicionados, gerando um cenário de grande limitação de oportunidades à sua presença em áreas tradicionalmente masculinas na academia como a medicina, direito e engenharia. E mesmo em setores menos qualificados a sua participação ficava muitas vezes restringida a papéis tradicionais de cuidadoras e donas de casa, sujeitando-se a atitudes estigmatizantes e comportamentos de isolamento quando faziam valer o seu direito a igual tratamento e oportunidades.

O caminho de promoção da igualdade entre homens e mulheres, iniciado em 1976 com a nova Constituição da República Portuguesa, revela-se longo, embora profícuo na produção de legislação promotora da igualdade de género, de oportunidades no local de trabalho e da participação das mulheres na política, garantindo o seu direito de exercício de um papel ativo e influente nos domínios publico e privado.

Por outro lado, a presença das mulheres no ensino superior tem aumentado duma forma constante, representando mais de 54% dos alunos com matricula ativa em 2023. Esta realidade espelha a forte mudança nas oportunidades sociais e educacionais, mas sem o desejável reflexo na ocupação de cargos de liderança a nível político e social.

O elevado escrutínio da vida pessoal a que estão sujeitas – num mundo fortemente masculino como o da política – tem consequências nefastas por via da maior visibilidade e, consequentemente, maior exposição. Aliás, lembremo-nos do caso recente de Jacinda Ardern, que renunciou ao cargo de primeira ministra da Nova Zelândia. Esta realidade apresenta-se não só no mundo da política, mas também noutros setores em que a mulher exerce cargos de poder, nomeadamente de alta liderança corporativa onde a representação de género é desigual.

Na realidade, atualmente, o foco de atenção centra-se em questões de cultura social muito mais que na vertente legislativa, ou seja, na igualdade legal. É no quotidiano pessoal e profissional que as preocupações continuam presentes, quer pela determinante questão da compatibilização da vida pessoal, profissional e familiar, ainda fortemente penalizadora para a mulher, quer pela manutenção social do tradicional papel de cuidadora que lhe é atribuído, perpetuando-se estereótipos de género que tornam a mudança mais difícil e, em consequência, mais lenta.

Embora tenham existido avanços significativos na legislação relacionada com licença parental, flexibilidade de horários e outras políticas que visam facilitar a conciliação entre trabalho e vida pessoal, muitas mulheres ainda enfrentam dificuldades significativas nesta área. Esta realidade é especialmente sentida em culturas onde as expectativas tradicionais de género persistem e onde o cuidado da família é visto primordialmente como uma responsabilidade feminina.

As empresas e organizações assumem um papel crucial na promoção da igualdade de género no local de trabalho, que poderá incluir a implementação de políticas que apoiem a conciliação entre trabalho e vida pessoal, a promoção de uma cultura organizacional inclusiva e o combate à discriminação de género em todas as suas formas.

Globalmente começa a existir a perceção de que, apesar da mudança de paradigma na abordagem das questões de género, se sente alguma estagnação, se não um retrocesso, no que se espera ser um processo evolutivo que conduza a uma sociedade onde não precisemos de quotas de género como garante duma justa e desejável representatividade das mulheres no processo de decisão e influência social.

É importante reconhecer que alcançar a igualdade de género é um processo complexo e multifatorial que exigirá o compromisso de governos, instituições, empresas e indivíduos em todo o mundo.

Cabe a todas e todos e a cada uma e cada um, na sua dimensão profissional e pessoal, contribuir, responsável e ativamente, na construção de uma realidade que se pretende, num futuro muito próximo, de verdadeira igualdade de oportunidades independentemente do contexto, dos atores ou do momento.

Meio século decorreu desde o dia em que vivenciei um misto de emoções… “Não foi uma desgraça” e “podemos falar sem medo”. E, sim, o histórico 25 de Abril continuará a ser uma oportunidade e uma força, nunca uma ameaça ou fraqueza, determinante para um passado, presente e futuro em que continuo a acreditar.

*Presidente da Comissão para a Igualdade da ULS de Barcelos/Esposende

Foto: ©DR