– E bebés?
– Desculpe?
– Bebés. Já pensou nisso?
– Ah, sim, pensei. Não quero.
Soou-me a pergunta de supermercado. Quer levar? Quantos quer? A médica, do outro lado da cortina, aproximou-se, emendou. Tenho muitas utentes que não querem, diz. Cada vez mais, diz. O problema às vezes são os maridos e a sociedade, diz.
Não tem mal, está no seu direito, diz.
Crónica – Um antónimo de mãe

Eu sei que não tenho que justificar e fico calada. Sou filha da luta de mulheres que passaram anos a cimentar a argumentação que já não me sinto obrigada a dar. Mas guardo com carinho a doutrina sobre os impulsos universais da maternidade. Vem sem solicitação ou anuência logo no abrir dos 20 anos, como se de um conselho de investimento bolsista se tratasse. Estarei a dar ao mercado na altura certa? Estarei a gerir bem estas ações?
Não deixes que seja demasiado tarde.
Tens a certeza?
Ainda te arrependes.
O tempo que não espera.
Olha que são só uns anos e depois podes voltar a ser como antes.
Há-de ser algo ginecologicamente importante de se perguntar a alguém à porta dos 30, rica em fibroadenomas. O próprio radiologista, umas semanas depois, mal os vê no ecógrafo pergunta se não os quero colocar à venda no OLX. Estou deitada na marquesa quando vou para o supermercado.
– Quando é que vai ter filhos?
– Hum. Não quero ter.
– Olhe, quando engravidar, veja isso com mais atenção.
Quando. Como uma inevitabilidade. Eu não quero e isso é mais válido porque o meu companheiro também não quer. Pobres das que estão sozinhas dentro da sua própria cabeça a defender o seu próprio corpo. Porque é preciso usar muitos “próprios” para se falar de maternidade; para justificar a decisão própria quando ela se opõe a um suposto desígnio – natural, universal e intemporal.
É logo a linguagem que torna inescapável a decisão. Não existe antónimo de maternidade. Não há nome que não seja pela negação. Não quero ter. Qual é o contrário de mãe? (Claro que não há nomes para muitas outras coisas. Também não há palavras para quem perde um filho – não se fica viúva ou órfã nessa circunstância.) E a existência de coisas para as quais não há palavras parece mais difícil de justificar.
Depois, ninguém pergunta porque é que vais ter filhos. Ai é? Por que é que vais? Que atrevimento questionar, de mão no corpo de outra, que razões emocionais, sociais, económicas, políticas, ecológicas, ideológicas se tem para dar condições dignas ao crescimento seguro de uma criança. Mas porque é que não queres sai facilmente disparado da boca, até daquelas que não se conhece.
Em “Maternidade”, a escritora Sheila Heti diz que haverá algo ameaçador numa mulher que não está ocupada com crianças: “Que tipo de problemas é que ela vai criar?”
Conheço as que criaram problemas que chegue e não deixaram de criar filhos. Mas não romantizo os sacrifícios que implicaram as escolhas não livres de outras tantas mães. Nenhum maniqueísmo poderá tornar isto sobre amor por crianças ou pelo cuidado – esse é exclusivo à condição de mãe ou pai. E adoro que haja quem queira cuidar de alguém apaixonadamente nessa condição. Mas não há histórias universais.
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Heti escreve também: “Será que eu quero ter um filho porque quero ser admirada como o tipo de mulher admirável que tem filhos? (…) Os pais têm algo muito mais incrível do que eu alguma vez terei, mas que eu não quero, mesmo sendo isso tão precioso, mesmo que de algum modo eles tenham ganhado o prémio ou o troféu a que corresponde o alívio genético – o alívio de terem procriado; sucesso no sentido biológico, que em determinados dias parece ser a única coisa que conta. (…) Há uma certa tristeza em não se querer as coisas que conferem sentido à vida de tantas pessoas.”
É extraordinariamente forte o ideário de sucesso e realização construído em torno de uma mulher mãe. Não o ser é a falência de uma parte de si própria enquanto função. Ergue-se uma estrada sinuosa de hesitação, medo e culpa: O que é que eu tenho de errado?
E no processo de interrogatório público montado em torno do assunto, quantas vezes não é sugerido olhar um ser como um vindouro prestador de serviços? Para entreter, demonstrar valor, dar significado, perpetuar uma descendência, e, mais tarde, para cuidar. Há um ênfase estranhamente grande na função de cuidado geriátrico que se hipoteca a um ser inexistente ainda. Há uma função capitalista a cumprir, então cumpra-se. O Estado também precisa desse filho – oferece vantagem fiscal. Mas, sabendo que estas são palavras óbvias, forço-me a lembrar que nenhuma criança é responsável por aliviar o sofrimento dos pais, ou salvar a Segurança Social ou a economia, evitar o próximo resgate ou estabilizar a balança comercial. Mas conhecemos tantos filhos instrumentalizados.
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Virginie Despentes verteu o jarro de ácido em “A Teoria King Kong”: “‘Façam crianças, é fantástico, sentir-se-ão mais mulheres e mais realizadas do que nunca’, mas façam-nas numa sociedade em derrocada, onde o trabalho assalariado é uma condição de sobrevivência social, mas não é garantida a ninguém, sobretudo às mulheres. (…) Sem filhos não há felicidade feminina, mas criar miúdos em condições decentes será quase impossível. De qualquer modo, é preciso que as mulheres se sintam em xeque. Seja qual for a tarefa a que se proponham, tem de se poder demonstrar que estão a realizá-la mal”.
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Maria Angelina, nascida em 1944, respondeu à filha, a jornalista Ana Cristina Pereira, sobre a coisa mais determinante na sua vida, para o trabalho “Mulheres – Uma revolução dentro de casa”. Sem hesitar, disse: a “pílula contraceptiva”. É um assombro a consciência da escolha. Lembrou-me Maria Teresa Horta e a história que conta de Luís de Barros, o marido, quando na madrugada do 25 de Abril o telefone tocou na casa de ambos os jornalistas e não houve conversa sobre qual deles sairia para a redação. Ela ficou em casa com o filho, ele voltou dias depois.
Fez-me pensar nas mulheres do Couço, cinco de muitas, presas a 27 de abril de 1962, quando preparavam a reivindicação das oito horas de trabalho no campo, em substituição do sol-a-sol. Da resistência delas somos coletivamente herdeiras, porque sem ela “a democracia não caía nos nossos braços”, narra a antropóloga Paula Godinho, que dedicou o doutoramento à sua luta. Diz-se que foram as primeiras a ser torturadas “como os homens” pela polícia política da ditadura. Desalmadamente. Sempre estiveram na luta e, no dia seguinte à tortura, voltaram. Como não figuram elas por entre os maiores símbolos da resistência? Quantas mulheres esquecemos?
Trouxe-me o facto de que a Revolução nos trouxe o direito à rua e o acesso a todo o lugar além da casa; nos deu o direito à voz; mas que o direito à escolha tardou, porque dois políticos católicos decidiram, em 1998, travar a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, proposta em assembleia pelo partido do governo. Sujeitaram-na a um referendo em que 68% dos eleitores não foram votar. Adiaram por dez anos a garantia da escolha.
Lembrou-me que, andadas quatro décadas na Revolução, uma amiga com idade para ser filha de Angelina chorava no dia em que, em 2015, essa lei do aborto foi alterada para incluir taxas moderadoras. A medida caiu um ano depois. Mas o acesso à escolha está ainda hoje longe de universal, havendo serviços hospitalares em que todos os médicos são objetores de consciência e mulheres a fazerem excessivos quilómetros para abortar. E havendo sentados na assembleia muitos homens que querem alongar esse caminho.
Sentei-me longos minutos na ponta do sofá, em março, a pensar nessa consciência da escolha ao ver eleito o deputado que pensou referendar-nos o corpo novamente. O líder da sua coligação bem dissera dia antes, no Dia Internacional da Mulher, que este era também um dia de “evocação à família, à maternidade”. E o país seguiu. Viu um ex-primeiro ministro, ex-ministros, ex-líderes partidários e ex-deputados ladearem um manifesto contra “os adversários da família” e uma suposta e perigosa “ideologia de género”. E havemos de seguir.
Tenho que serrar os dentes para não gritar que não somos mãe, nem família, nem função. Uma amiga disse que, por esta altura, esperava que as filhas destes homens andassem a vassourar as teias de aranha das suas cabeças e a gritar. “Mulher em democracia não é biombo de sala”, como cantava o Zeca. É, como qualquer pessoa, o que ela quiser. (Mas que sítio é este onde frases básicas continuam a ter que ser gritadas?)
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Quantas perguntas sobre decisões íntimas se fazem levianamente a um homem? Quantas vezes se questiona o seu discernimento? (Eu sei que é estreito o caminho para o precipício da generalização, e que o machismo é prisão idêntica para muitos homens – catalizadora de dependências, autolesão e suicídio, exclusão social. E que não há como não ver a forma como a masculinidade tóxica e violenta, o trauma e o abuso ignorados tornam agredidos em agressores. E como o ciclo se perpetua.) Mas iria a sua liberdade ser tão facilmente exposta como se estivesse no supermercado ou colocada em grande destaque nas livrarias?
*Co-fundadora do Fumaça (podcast de jornalismo de investigação)
Foto: ©DR