Nascida numa aldeia do concelho de Barcelos, frequentei a escola feminina de Balugães, onde todos os dias, à entrada, tínhamos de cantar – canção que nunca aprendi, pois estava proibida de o fazer, já que destoava muito – voltadas para os quadros do Presidente da República, Américo Tomás, e do Presidente do Conselho de Ministros, Marcelo Caetano, que ladeavam um crucifixo. Para continuar os estudos, integrei um colégio interno de freiras, em Ponte de Lima.
Como foi o 25 de Abril para mim
No dia 25 de Abril pela manhã, todas notámos um ambiente pesado. As irmãs estavam nervosas, de semblante carregado, mas não nos disseram nada. Só fiquei a saber que, afinal, tinha havido uma revolução quando as minhas colegas, de regresso ao colégio após terem ido almoçar a casa, contaram o que tinham visto na televisão.
Nunca mais houve sossego naquele lugar e tanto insistimos que nos foi permitido ver a RTP. Já não tivemos mais aulas e pudemos ficar a acompanhar a emissão. Para minha grande mágoa, as fronteiras foram fechadas e o almejado passeio a Santiago de Compostela acabaria por ser adiado. Não por muito tempo! Com a chegada do 27 de Abril veio também a autorização para sairmos do país. E lá fomos, rumo a Espanha. Já na fronteira de Valença, repetia-se a desilusão: as autorizações de saída estavam assinadas pelos anteriores governantes e não eram válidas, pelo que não pudemos prosseguir.
Confesso que, naquela época e perante tais circunstâncias, não vi com agrado a revolução. Criança de 12 anos que pouco ou nada sabia da realidade, o importante mesmo era ir a Santiago de Compostela.
Contudo, há factos marcantes que recordo do pré-revolução: as eleições para a Junta de Freguesia. Como vivíamos com a minha avó, só ela pôde votar. O meu pai e, muito menos, a minha mãe, não tiveram esse direito. Ou seja, só exercia o direito de voto o elemento mais velho do agregado e, mesmo assim, com determinada posição social. Naquelas eleições ganhou a “Junta Velha”, com votos de pessoas que não moravam na aldeia, facto que sempre me intrigou e que me levava a questionar a razão de assim ser. As respostas eram sempre evasivas, deixando-me inquieta.
Os homens e as mulheres não se juntavam na escola, na igreja… os cafés eram frequentados apenas pelos primeiros. Dois mundos à parte! Ter direito a prosseguir os estudos era um privilégio dos filhos rapazes das pessoas mais abastadas. Os seminários foram alternativas para alguns membros das proles com menos recursos.
Poucas eram as meninas que iam estudar. Felizmente, fui uma dessas, mas se para os meus pais não foi fácil, para mim também não o foi. Ter que sair da família, deixar os meus pais e irmãos, tornou o adormecer doloroso. Mas era a única forma de me assegurarem um futuro melhor.
Vivi a vinda dos “retornados”, pois tenho-os na família. Foi uma grande preocupação para todos os que estavam na Metrópole e para os que vinham das ex-colónias: os primeiros comícios, os ataques às sedes dos partidos, as manifestações em defesa da Rádio Renascença… foram situações que vivi intensamente.
Se hoje ser mulher ainda não é fácil, porque a igualdade está longe de ser alcançada, um grande caminho foi já percorrido. E não escondo que sinto alguma nostalgia por ver que os jovens não valorizam o seu percurso escolar quando tantos da minha geração gostariam de o ter feito e não puderam; de não continuarem a lutar por uma sociedade melhor, mais justa, fazendo uso da única “arma” que a democracia nos trouxe: o voto! Vejo com tristeza que tudo o que foi conquistado com o esforço de todos, seja desvalorizado por muitos.
Faço votos para que os festejos do cinquentenário do 25 de Abril traga melhores recordações, pois é sinal que a vida está melhor e que a sociedade é mais justa.
*Presidente da Comissão de Protecção de Crianças e Jovens de Barcelos
Foto: ©DR