Bem-vindos ao mundo encantado da fábrica musical

GRACIELA COELHO
Música e Designer
25 de Abril 2024
Bem-vindos ao mundo encantado da fábrica musical

Sabemos que no final dos anos 60 e no início dos 70 o mundo se viu invadido por um turbilhão de mudanças culturais e sociais, dando lugar a uma era de liberdade sem precedentes. Este período foi marcado por uma revolução de valores e direitos civis, alimentado pelo desejo de igualdade e explosões de criatividade.

À procura de uma expressão mais autêntica das suas ideias e sentires, os artistas encontravam espaço para explorar temas controversos e provocadores: as questões de identidade, género e sexualidade, o questionamento das instituições sociais, políticas e religiosas, num desafio claro às normas estabelecidas.

Artistas como Dylan, Bowie e Lou Reed, ou mesmo festivais de música como o que ocorreu em Woodstock, tornaram-se ícones da contracultura, da individualidade, na direção de um estilo de vida mais autêntico e livre. Abriam-se as portas para o Punk, que ganhou destaque enquanto forma de expressão dos jovens descontentes com a sociedade da época.

Não deixa de ser curioso que, nos dias de hoje, num mundo onde as plataformas de streaming e redes sociais oferecem um alcance global, permitindo uma diversidade sem precedentes – que poderia e deveria ser libertadora – muitos artistas se sintam cada vez mais limitados pela necessidade de se moldarem a um padrão estabelecido, rumo ao sucesso mediático ou comercial.

É verdadeiramente paradoxal que os artistas sejam encorajados a expressar a sua individualidade, desde que esta venha embalada num pacote lucrativo e seja facilmente digerível. A liberdade é uma bandeira erguida com orgulho, mas também um campo minado de exigências auto-impostas: expectativas, pressões, aceitação do público, sucesso comercial. As artistas femininas são frequentemente reduzidas a estereótipos, objectificadas, subestimadas, deixando-se conformar, demasiadas vezes, com padrões de beleza e comportamento.

Continuam a lutar – num mundo que foi sendo dominado por artistas homens – pelo seu lugar no centro dos palcos e na direção artística das suas obras e carreiras, inspirando outras mulheres a fazer o mesmo. Editoras e agentes exercem uma influência significativa sobre o processo criativo, de modo a moldar narrativas em busca de lucro. Com o medo do fracasso, do cancelamento e a busca incessante de validação, os artistas sufocam a sua própria criatividade e produzem músicas/letras que seguem fórmulas e tendências ditadas pela fábrica musical.

A música mainstream arrasta multidões. Une as pessoas através de fórmulas chiclete (claro, os artistas têm liberdade criativa, mas também têm contas para pagar), refrões pegajosos e cativantes, videoclips glamorosos, grandes produções fotográficas, criando a ideia de comunidade que transcende fronteiras e culturas. Mas por detrás dessa aparente harmonia, há também uma homogeneidade subjacente. 

Ainda assim, nem tudo está perdido. Há os corajosos (dentro e fora do mainstream) que ainda ousam desafiar as normas, utilizando a sua arte como um meio para a expressão autêntica, para gerar emoções genuínas e para experimentar em novos territórios. A verdade, a autenticidade e a profundidade artística podem vir das produções mais sofisticadas, envolvendo equipas de centenas de pessoas, ou das produções caseiras, “amadoras”, conseguidas com poucos meios. Para esses artistas, grandes ou pequenos, superestrelas ou anónimos, a música é mais do que entretenimento (mesmo que isso signifique nadar contra a corrente).

As redes sociais e plataformas de streaming permitem o acesso ilimitado a um vasto catálogo musical, permitindo aos utilizadores, com algoritmos de recomendação, descobrir novos artistas e géneros que de outra forma seria impossível encontrarem. Os músicos independentes encontram assim lugar nos recantos mais obscuros da internet (ou como dizia Chris Anderson, na “Cauda longa”). São as suas plataformas de protesto, onde a música pode ser apreciada e florescer sem as algemas do lucro ou do sucesso.

A batalha continua! A competição é imensa e é cada vez mais difícil um artista destacar-se no meio de tanto ruído. É um desafio que também deve envolver os queridos leitores/ouvintes, que devem permanecer, mais do que nunca, atentos e exigentes.

Embora possa parecer uma batalha desigual, é importante celebrar e apoiar os artistas que lutam para manter viva a chama da autenticidade, da criatividade, fiéis à sua visão e comprometidos com a sua verdade. Defendendo sempre o direito de cada artista a contar a sua história e ao mesmo tempo garantindo que sejam devidamente recompensados pelo seu trabalho. A diversidade musical é fundamental para a riqueza cultural da nossa sociedade.

Nestas comemorações de Abril, que a música seja um farol de liberdade, inspirando-nos a pensar, sentir e agir além das limitações impostas pela realidade. Porque no final a verdadeira música não é sobre visualizações, vendas ou estatísticas – é sobre tocar os corações daqueles que a ouvem.

Foto: ©ALEXANDRE FERNANDES