“Jesus e os seus iam pelos caminhos e povoados, e Deus falava pela boca de Jesus, e eis o que dizia, Completou-se o tempo e o reino de Deus está perto, arrependei-vos e acreditai na boa nova. Ouvindo isto, pensava o vulgo das aldeias que entre completar-se o tempo e acabar o tempo não podia haver diferença, e que portanto vinha aí próximo o fim do mundo, que é onde o tempo se mede e gasta.” (José Saramago in O Evangelho segundo Jesus Cristo)
A Liberdade que me deu vida
Os nomes desta história também parecem retirados da bíblia, começa assim: José cresceu na Cabeça Gorda, uma pequena aldeia próximo da Lourinhã, de Torres Vedras, por entre os campos agrícolas que abasteciam a capital. Cedo aprendeu como se trabalhavam os campos, ao mandarem-no “para sachar” aos 13 anos. Como era um rapaz de boa estatura, dois anos depois já ganhava “como os homens”. Trabalhava de sol a sol, quando o havia! As sardinhas à refeição eram raras e muitas vezes dizia: “era uma para muitos”. Quando o avô matava um porco, também matavam a fome.
José só fez a 3.ª classe. A 4.ª classe e a carta de pesados tirou-as na tropa. Bem, não numa tropa qualquer, como era um rapaz de boa estatura, lá o escolheram para polícia militar e teve “guia de marcha” para Angola. Corria o ano de 1965 e o Natal foi passado longe da família. Deixou-o registado num postal, onde mandava beijinhos e felicidades aos pais, sem saber se a Guerra Colonial lhe iria permitir o regresso.
Maria nasceu e cresceu no Tortosendo, vila operária próxima da Covilhã. Tinha o sonho de ser médica, mas a mãe mandou-a para a modista aprender costura. Na sua inocência fugia do lavor para dar apoio à professora na escola. Escusado será dizer que a mentira teve uma perna muita curta e valeu-lhe uma sova da mãe. O pai era padeiro e a mãe vendia pão e bolos e a comida nunca faltou. Na sua vila já havia cinema, faziam-se festas às escondidas e com muitos cuidados, sim, porque ali a PIDE alimentava as prisões de Portugal.
Em casa da Maria ouviam-se as notícias que a BBC transmitia pelo rádio, baixinho, à uma da manhã e com as rondas do seu pai em redor da casa para verificar se não havia ouvidos informadores à escuta.
Maria conta ainda hoje como é que a PIDE levou alguns vizinhos, os jovens maridos das suas amigas, familiares… Um teve de saltar pela janela do segundo andar da fábrica e fugiu, só com o macacão que tinha vestido. Outro levaram-no de noite e durante meses ninguém soube dele. Regressou em silêncio. Até os irmãos de Maria tiveram dissimuladamente de lidar com a Polícia do Estado, quando o mais velho, já emigrado em França, recebeu um telegrama do mais novo em Portugal dizendo-lhe para não regressar ao país. Por cá, o mais novo retirou todas as fotografias do mais velho de todas as casas. Da mãe, da sogra… a PIDE procurou-as na casa desta última, mas nada havia. Correu bem.
José regressou da guerra. Já tinha a carta de pesados e começou a transportar máquinas em camiões. O destino levou-o à vila do Tortosendo, até à Maria. Apaixonaram-se, casaram e tiveram um filhinho. Ela saiu da terra e foi conhecer o mundo rural do marido, diferente do seu, mais citadino. Ele queria que nada faltasse à sua nova família e decidiu fazer como o cunhado: ir “de assalto para França”. Ainda hoje não gosta de falar no assunto, foi duas vezes, mas arrepiava-o o que os passadores faziam às mulheres que iam sozinhas. Mundo cão! A sua Maria haveria de se juntar a ele, em França, mas foi de táxi, com o filhinho e a incerteza de um caminho longo a percorrer.
Em França, família e amigos apoiavam-se uns aos outros, enquanto em Portugal tentava-se mudar o regime autoritário de António de Oliveira Salazar. Alguém lutava por um país que queria livre, que queria novamente seu.
José, Maria e o filho regressaram a Portugal. O petiz fez 4 anos no dia anterior à Revolução de Abril. Tudo mudou, o silêncio, o medo, até a incerteza foram para longe e o jovem casal decidiu que era hora de ter um novo bebé.
Foi assim que nasci, fruto da Revolução, da Liberdade que Abril trouxe, da alegria de poder trazer ao mundo um novo filho porque a vida só podia melhorar.
Melhorou e muito! Eu, nascida no ano seguinte ao 25 de Abril de 1974, não tendo vivido o fascismo, tenho as suas marcas no meu ADN. E tenho a consciência de que nunca deixarei de lutar pela Liberdade que me deu vida!
Foto: ©DR