Gustave Eiffel ficou conhecido por “Mágico do Ferro”, sendo talvez a melhor caracterização deste ícone francês que construiu pontes metálicas, edifícios e monumentos um pouco por todo o mundo1.
Gustave nasceu em 15 de dezembro de 1832 em Dijon, França2. Com o aparecimento dos caminhos de ferro no século XIX, Dijon tornou-se um importante centro de transporte de minério e de indústria pesada. Neste contexto histórico e geográfico, a mãe de Gustave, que estava a dar continuidade ao negócio da família na área do carvão vegetal, com a introdução da tecnologia dos altos-fornos, resolveu apostar no carvão mineral, que tinha na altura uma grande procura3.
Em 1850, Gustave matricula-se no Collège Sainte-Barbe, em Paris. Durante este período, o seu aproveitamento foi mediano, ficando a ideia que ele teria mais vocação prática do que académica. No final do percurso escolar, devido a dúvidas dos seus professores quanto à sua capacidade académica, Gustave foi submetido a uma entrevista em resultado da qual, em vez de seguir o ambicionado acesso à École Polytechnique, foi-lhe dado o certificado que lhe garantia a entrada na École Centrale des Arts et Manufactures – instituição que tinha como principal objetivo a formação de engenheiros generalistas necessários para o setor industrial emergente em França, sendo mais vocacional do que a École Polytechnique que formava os seus estudantes para os quadros de estado4. Após o segundo ano de frequência, na altura de escolher uma área para se especializar, dentro das áreas de metalurgia, mecânica, química e civil, Eiffel escolheu a área de química3. Felizmente para si, a École Centrale apostava na preparação de estudantes para um leque alargado de educação técnica.
Após a sua graduação, considerando que precisava de enveredar por uma nova carreira, Gustave começa a trabalhar como estagiário na fundição de alto-forno Châtillon-sur-Seine, junto do seu cunhado5-3. Aqui, tentou aprender o máximo em termos técnicos, administrativos e financeiros, tendo sempre em vista este estágio como uma fase de transição.
Quando Gustave procurava encontrar o seu caminho profissional, surgiu-lhe uma oportunidade que se viria a revelar um grande golpe de sorte, nomeadamente a sua ida para a indústria mais dinâmica na altura, tanto em França como no resto da Europa – a indústria dos Caminhos de Ferro. Neste novo trabalho é assistente de Charles Nepveu, um engenheiro muito respeitado na área de projeto e construção de motores a vapor para as locomotivas e material circulante. Assim, Gustave teve a oportunidade de se envolver em atividades de gestão empresarial e de estudar alguns temas específicos, dos quais se destaca a conceção de equipamentos para execução de fundações em leitos de rios, que lhe viria a ser muito útil posteriormente5-3.
Mais tarde, em 1856, a empresa de Charles Nepveu entra em falência, mas este encontra-lhe um bom emprego na Compagnie des Chemins de Fer de l’Ouest, onde vem a conhecer o engenheiro-chefe Eugène Flachat. Anos mais tarde, Gustave “transformado” em Eiffel, escreveu que devia muito a Flachat, pois este tinha sido o pioneiro, em França, na introdução de placas de ferro amarradas com rebites, ao invés de parafusos e pinos usados até então3.
A obra e a Casa do engenheiro-construtor
De um modo geral, a utilização de estruturas metálicas de ferro iniciou-se no século XIX pela construção de pontes, levando à substituição de materiais mais tradicionais, como a madeira e a alvenaria, colocando assim novos desafios aos engenheiros civis, tanto ao nível de projeto como ao nível da necessidade de novos métodos construtivos.
A primeira ponte metálica projetada por Eiffel, e prontamente aceite para construção, tinha cerca de 22 m de vão, era em ferro fundido e foi construída para a Saint-Germain Railway3. Com o sucesso desta obra, vence naturalmente o concurso para uma grande ponte em Bordéus – La Passerele, com uma extensão de aproximadamente 500 m. Neste caso, o principal desafio era o prazo de construção proposto de dois anos, o qual foi uma prova de fogo que Eiffel conseguiu superar com distinção, alcançando assim a admiração e o respeito de todos e, em particular, dos seus trabalhadores, que no final o presentearam com uma medalha (tinha numa das faces a ponte e na outra o aparelho de execução de fundações).
Nesta ponte, Eiffel introduziu uma técnica utilizada pela primeira vez em França, com um procedimento aperfeiçoado, para a realização das fundações dos pilares através de caixões de ar comprimido. A ponte foi inaugurada em 1860 e, apesar de já ter sofrido algumas intervenções, ainda está operacional para tráfego pedonal. Esta foi a primeira ponte com um modelo de vigas em treliça de altura constante. Pela sua simples conceção, conduziu a enormes benefícios ao nível do processo construtivo e poupança de materiais3-6.
Assim, em outubro de 1868 é criada em França a empresa de Eiffel, sob a designação de “G. Eiffel & Cie”6-7, tendo Théophile Seyrig como associado. Este, além da contribuição financeira, colaborou com a sua competência técnica, sendo o responsável pelo gabinete de estudo que projetou a Ponte Maria Pia, no Porto, uma das mais notáveis obras da empresa.
Esta designação manteve-se até 1879 quando, com a saída Seyrig, Eiffel decidiu mudar a denominação da empresa para “G. Eiffel”, tendo-se mantido até 1890, ano em que se transforma em sociedade anónima, sob a denominação de “Compagnie des Établissements Eiffel”. Mais tarde, após o escândalo e acusações na construção do Canal do Panamá, Eiffel altera o nome para “Société de Constructions de Levallois-Perret”7.
O património histórico construído em Portugal e no mundo é vasto. Dado o número significativo de obras, tais como pontes, estátuas e edifícios, muitas são as de referência e emblemáticas que ficaram até os dias de hoje, tais como: a Torre Eiffel – símbolo de Paris e que lhe deu a alcunha de “Mágico do Ferro”8 –, a estrutura metálica da Estátua da Liberdade – símbolo de Nova Iorque –, e a Ponte Maria Pia – símbolo incontornável na paisagem do Porto e, provavelmente, uma das pontes metálicas que mais condicionou a carreira de Eiffel, sendo o único monumento português a fazer parte da lista de grandes obras de engenharia da American Society of Civil Engineering. Pode-se dizer que Eiffel teve o mérito de criar estruturas que definem o local onde foram implantadas e que são conhecidas em todo o mundo como referências estruturais, patrimoniais e culturais.
Devido aos desafios levantados nas obras realizadas pela Casa Eiffel, nome pelo qual a empresa era conhecida em Portugal, os projetos implementados acarretaram o desenvolvimento de novas soluções estruturais, fomentando assim a introdução de novos materiais e a implementação de processos construtivos inovadores, que se traduziram na execução das suas obras de um modo mais célere e seguro, ultrapassando assim constrangimentos da técnica construtiva utilizada na época, sendo alguns desses processos construtivos utilizados ainda nos dias de hoje.
Na realidade, em detrimento de métodos de construção baseados na aproximação por tentativa e erro, que imperavam naquela época, Eiffel era considerado um gestor astuto e um excelente organizador, sendo conhecido por ser muito disciplinado no processo de execução e exigente no planeamento. Note-se que Eiffel era engenheiro químico de formação, mas assinava os projetos das pontes como “Engenheiro Construtor”.
As pontes da Casa Eiffel em Portugal
Devido ao pioneirismo de Gustave Eiffel, muitas pontes e obras de arte foram, ao longo da história e por falta de informação, erradamente associadas ao seu nome e à Casa Eiffel, levando a interpretações abusivas sobre o perfil construtivo do Eiffel.
Em Portugal, a Casa Eiffel desenvolveu a sua atividade nas décadas de 70, 80 e 90 do século XIX. Com base em pesquisa bibliográfica e nos registos oficiais do arquivo da Infraestruturas de Portugal, durante esse período, a Casa Eiffel deverá ter construído 27 pontes com vão superior a 20 m, localizadas, quase na sua totalidade, a norte do rio Tejo, ao longo de várias linhas ferroviárias. Por razões de simplicidade, utiliza-se no presente artigo a designação genérica de ponte para referir ponte propriamente dita ou viaduto.
Das pontes construídas pela Casa Eiffel, 23 já foram substituídas por outras e apenas três encontram-se em serviço, nomeadamente a Ponte da Praia (Linha da Beira Baixa), que foi reafectada à rodovia; a Ponte de Viana do Castelo, na Linha do Minho; e, por último, a Ponte do Alviela, na Linha do Norte. A Ponte Maria Pia está atualmente desativada, existindo, contudo, projetos para o seu reaproveitamento em contexto de mobilidade urbana.
Em termos de padrões estruturais e construtivos, as pontes metálicas da Casa Eiffel caracterizavam-se por tabuleiros apoiados em vigas principais em forma de treliça do tipo cruz de Santo André ou rótula múltipla em ferro pudelado e por pilares em alvenaria ou metálicos.
A vida e a ponte do Eiffel em Barcelos
Do ponto de vista pessoal, Gustave Eiffel poderá ter tido uma ligação forte a Portugal (1875-1877), onde estabeleceu residência na freguesia de Barcelinhos, no concelho de Barcelos9. A partir desta localidade, Eiffel poderá ter desenvolvido os projetos e acompanhado as construções nesse período, em particular a ponte sobre o rio Cávado (fig. 1), que estabelece a ligação entre as freguesias de Rio Côvo Santa Eugénia e Barcelos.
De acordo com o contrato e o caderno de encargos, a ponte foi apresentada a concurso de 15 de novembro de 1875 pela Direção dos Caminhos de Ferro do Minho e foi aceite em virtude da Portaria de 18 de março de 1876. À época, o prazo fixado para concluir a obra era 22 de março de 1877, sendo, contudo, inaugurada a 21 de outubro desse mesmo ano devido a diversos atrasos atendendo às tempestades e inundações ocorridas em 3 de dezembro do ano anterior10.
A ponte era composta por um tabuleiro apoiado superiormente em duas vigas principais metálicas, dois pilares e dois encontros de alvenaria. Era enviesada, possivelmente para colocar os pilares no sentido da corrente do rio de modo a não reduzir a secção de vazão.
O tabuleiro tinha um comprimento total de 132,536 m, com um tramo central de 48,608 m, dois tramos extremos de 40,796 m e uma entrega em cada encontro de 1,168 m (fig. 2). O tabuleiro apoiava superiormente em duas vigas principais em ferro, em forma de treliça de rótula múltipla, afastadas entre si de 3,5 m e com 5,20 m de altura, onde as barras eram unidas a cada cruzamento e solidamente ligadas aos montantes, constituindo as faces verticais das vigas.
A via férrea era assente na parte superior do tabuleiro, com uma largura de 1,73 m entre eixos dos carris, perfazendo a bitola ibérica com uma distância entre as faces interiores dos carris de 1668 mm12. Adjacente à via férrea existiam dois passeios com 0,65 m de largura de piso livre, protegidos por uma guarda metálica de 1,0 m de altura e apoiados nos banzos superiores das vigas principais12.
Cada pilar era formado por duas colunas tubulares com 2,2 m de diâmetro (fig. 3), cheias de betão hidráulico, contraventadas entre si por cruzes de Santo André e travessas horizontais. Os tubos de revestimento do betão eram em ferro cravado de 1,0 cm de espessura. As colunas iam até à rocha e as suas fundações foram feitas através de caixões de ar comprimido.
Em fase de construção, esta técnica consistia na utilização de um cilindro de chapa de ferro fundido, chamado de caixão, que servia de invólucro e ficava embutido no aluvião; o mesmo era divido em três compartimentos horizontais, onde o do meio era hermético e servia de câmara de equilíbrio da pressão do ar; o compartimento inferior era a zona onde os trabalhadores procediam à retirada de solo e, consequentemente, ao afundamento do cilindro. O trabalho era concluído quando fosse atingida a rocha.
Na realidade, foi nos pilares desta ponte que foi aplicado, pela primeira vez em Portugal, o processo de construção de fundações por meio de ar comprimido, a profundidades entre 20 e 23 m. Por fim as colunas eram protegidas até ao nível da estiagem por caixões de madeira, igualmente cheios de betão hidráulico e exteriormente rodeados de enrocamento de pedra solta, acamada tão perfeitamente quanto possível.
Os encontros são em alvenaria de pedra assente em argamassa. A estrutura do tabuleiro apoiava sobre um dos encontros através de aparelhos fixos e nos restantes apoios através de aparelhos rolantes, que assim permitiam movimentos para acomodar às variações de temperatura.
Em 1976, as novas exigências funcionais da linha e a necessidade de reforço estrutural levaram à substituição integral da estrutura do tabuleiro. A nova estrutura em aço é constituída por vigas principais em Cruz de Santo André. Os pilares originais foram reforçados através da envolvência das bases com betão, da introdução de capiteis e do enchimento dos contraventamentos entre colunas (fig. 4). Contudo, hoje ainda se pode observar alguns traços da ponte original, nomeadamente os encontros originais em alvenaria e a forma original dos pilares.
Gustave Eiffel foi, para além de um engenheiro-construtor emblemático, um grande gestor e um inovador insaciável, cuja obra ficará para sempre ligada ao nascimento da ferrovia e das estruturas metálicas em Portugal.
*Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico.
Bibliografia
[1] G. Pilot e J.-L. Bordes, “Ouvrages du génie civil français dans le monde. Ponts et viaducts. 1820-1915,” em Comité génie civil et bâtiment, Paris, 2011.
[2] F. Seitz, Gustave Eiffel, Le triomphe de l’ingénieur, Paris: Armand Colin, 2014.
[3] D. I. Harvie, EIFFEL, The Genius Who Reinvented Himself, Stroud, Gloucestershire: The History Press, 2004.
[4] N. J. Graves (1965), “The ‘Grandes Ecoles’ in France, The Vocational Aspect of Secondary and Further Education, 17:36, 40-49, DOI: 10.1080/03057876580000041”.
[5] A. Alter e P. Testard-Vaillant, “L’ascension Calculée d’un bourgeois Provincial,” Les Cahiers de Science & Vie, pp. 14-20, 10/1996.
[6] B. Marrey, “Eiffel avant la tour,” Les Cahiers de Science & Vie, pp. 22-31, 10/1996.
[7] G. Eiffel, La Tour de Trois Cents Mètres, Paris: Sociéte des Imprimeries Lemercier, 1900.
[8] H. Azevedo, “Biografia Gustave Eiffel. O mágico do ferro,” Engenharia e Vida, vol. 04, pp. 80-83, Julho/Agosto 2004.
[9] F. Q. Abragão, “Os Homens da Ponte Maria Pia,” Boletim da C.P., n.º 283, p. 2 a 6, 1953.
[10] A. Vasconcelos, Pontes Ferroviárias do Alto Minho. Barcelos, Viana do Castelo, Caminha e Valença do Minho, Lisboa: Fundação Caixa Agricola do Nordeste, 2015.
[11] V. Pinho, Z. Fonseca e D. Silva, Jornal de Barcelos n.º 123, 08/05/2013.
[12] Caminho de Ferro do Minho, “Contrato e caderno de encargos para o fornecimento e montagem dos pilares e superestructura metallica,” Arquivo Técnico da Infraestruturas de Portugal, Porto, 1876.